A cimeira de Maputo, que arranca esta semana, é a última do actual secretário executivo da Comunidade de Países de Língua Portuguesa. Ao SOL, Domingos Simões Pereira insta as nações lusófonas a não perderem a oportunidade de uma política económica comum. A seguir, e com a devida vênia, transcrevemos a entrevista publicada no site do semanário Sol.Moçambique escolheu a segurança alimentar como tema da cimeira de Maputo. Que soluções concretas podemos esperar?
A cimeira é a oportunidade do estado que acolhe o evento de liderar a organização e abordar o assunto que lhe parece mais relevante ou aquele no qual se sente mais autorizado para emprestar à organização uma nova visão. A escolha deste tema é um reconhecimento da vocação agrícola muito importante dos nossos oito estados. E significa que as populações podem contar com uma visão de futuro por parte da organização neste campo. É importante destacar a intenção de desenvolver um plano estratégico comum que permita, mesmo reconhecendo a diversidade de definições de segurança alimentar em cada um desses países, criar um espaço comum. É uma união de várias perspectivas que nos deixa animados e agradecidos que Moçambique tenha escolhido este tema.
Mas qual será o impacto concreto deste debate?
Nos próximos tempos, a CPLP tem vários grandes objectivos. O primeiro é a nível institucional. Penso que o percurso já feito pela organização exige hoje uma maior adequação dos seus instrumentos aos objectivos definidos. Quer dizer que a própria estrutura executiva precisa de ganhar outro nível de autonomia e precisa de poder acompanhar cada Estado e assegurar que as políticas comuns que são definidas em conjunto encontram respaldo nas políticas nacionais de cada estado. Também é importante que toda a comunidade de povos que falam Português se reveja mais na organização, e portanto assuntos como o exercício da cidadania e a livre circulação no espaço da CPLP, ou conseguimos responder positivamente ou começa a colocar-se mesmo como um verdadeiro entrave ao desenvolvimento da organização. Mas afastando-nos desta vertente institucional, o grande desafio vai ser a capacidade de abordar e ultrapassar constrangimentos como o ainda prevalecente analfabetismo dentro da comunidade e questões como a pobreza extrema e a fome. Ao assumir a abordagem do tema da segurança alimentar e nutricional, há aqui uma tentativa de abordagem do tema da pobreza, mas de forma mais positiva. Em vez de falar dos problemas, estamos a falar de estratégias para ultrapassar esses problemas. Vai permitir ainda aos estados partilharem as suas diferentes visões. Para os países mais desenvolvidos, o problema da segurança alimentar já não é tanto um problema de produção, é um problema de mercado, das indústrias de transformação, de relações internacionais. Por exemplo, Portugal não desaprendeu a produzir. Portugal confronta-se é com um problema de como fazer escoar os seus produtos perante os constrangimentos que se colocam. Quando falamos de populações africanas, aí ainda há problemas de produção insuficiente, mas também vamos encontrar situações intermédias onde a produção se poderia considerar suficiente, mas ou a capacidade de transformação é limitada, ou os custos de factor não permitem que o grosso da população tenha acesso a uma alimentação de qualidade com custos que sejam realmente comportáveis. A CPLP, também neste caso, é um verdadeiro manancial de experiências que se forem colocadas à mesma mesa e merecerem a análise de especialistas e de técnicos poderá daí sair indicações bastante importantes para outras entidades. Portanto, o objectivo é criar uma visão partilhada, preencher com as diferentes definições de segurança alimentar um eventual vazio e criar sinergias entre os países que têm capacidade de produção mas que têm problemas de mercado e os países que podem constituir-se em mercado, mas que para esse efeito têm de adaptar políticas internas. Podemos estar a dar aqui um contributo e uma lição muito importante.
A crise da Guiné-Bissau deu a conhecer à CPLP conheceu as suas próprias limitações?
A minha maior frustração é ver que o meu país é capaz de sair deste ciclo vicioso. Mas é verdade que, se por um lado é notório o esforço e o empenho com que a CPLP tem acompanhado esta situação, há momentos de verdadeira frustração e de reconhecimento que de facto não dispomos de todos os instrumentos para tratar e resolver situações tão complexas como esta. Mas eu penso que o crescimento de organizações como a CPLP só pode resultar deste tipo de rupturas. É impossível conceber toda a política de uma organização como a CPLP se não for confrontada com este tipo de situações. É exactamente reconhecendo as nossas insuficiências que passamos a ambicionar que haja correcções, que haja a tentativa de adequar a instituição ao seu objectivo. Não temos quaisquer dúvidas de que é difícil alterar a definição da competência da CPLP. Se considerarmos o Conselho de Segurança das Nações Unidas como a instância máxima para dirimir situações de conflito, facilmente compreendemos que as Nações Unidas falam normalmente através das instâncias regionais que normalmente têm uma definição territorial para exercer o seu mandato, e tem um mandato efectivo das Nações Unidas. Será sempre muito difícil imaginar que as Nações Unidas queiram diversificar o campo de implementação desse tipo de competências. O que estou a dizer é que não há uma frustração no sentido de pensar que nós podíamos concorrer com instâncias como a UA, a UE, a CEDEAO, a SADC, entre outras. Apesar disso, o que foi possível desenvolver com as Nações Unidas, com o grupo de contacto para a Guiné-Bissau, deu-nos lições de aprendizagem que hoje poderá ajudar os nossos países e os nossos órgão a adequar de forma mais eficaz a estrutura da CPLP.
É possível reverter a situação na Guiné-Bissau ou vamos assistir à legitimação daquele poder interino?
O problema da Guiné-Bissau é um processo. Eu compreendo que para o público é muito difícil evitar aquelas avaliações comparativas, 'quem é que fez o quê' e 'quem é que está melhor posicionado'. Eu costumo dizer que se fosse esse o nosso problema, nós estávamos bem. Se a solução que se encontrou para a Guiné-Bissau, independentemente de ser vista como uma solução de A, de B ou de C, se fosse uma boa solução para a Guiné-Bissau, nós estávamos bem. Infelizmente, as várias situações que se vão produzindo na Guiné-Bissau chegam a ofuscar a atenção de quem acompanha a situação. O problema não é um problema entre a CEDEAO, a CPLP, a UA ou outros. O problema é a Guiné-Bissau, as suas instituições, a sua sociedade, o seu processo de desenvolvimento é fortemente comprometido a partir do momento em que não há consensos internos para um programa que seja baseado na paz, na estabilidade e num desenvolvimento coerente. E era isso que a CPLP estava a tentar fazer, assistindo o país a criar os consensos internos necessários para um desenvolvimento harmonioso. O 12 de Abril aconteceu contra a corrente de todas as nossas expectativas no terreno. Infelizmente, depois de um pronunciamento que uniu todos os parceiros internacionais, houve discórdia na interpretação de como restaurar o ambiente de normalidade. Nós tivemos uma interpretação, outras instituições tiveram outras, a CEDEAO visivelmente divergiu deste nosso posicionamento. Contrariamente ao que muitas vezes transparece para fora, nós não condenamos a CEDEAO. Nós respeitamos o facto de termos uma interpretação diferente. Agora, independentemente de termos interpretações diferentes e de reconhecermos à CEDEAO o tal princípio de subsidiariedade que lhe permite entre as reuniões do Conselho de Segurança da ONU ser a entidade autorizada a desenvolver acções no terreno, tentamos alertar para o facto de aquilo que a CEDEAO estar a tentar experimentar como solução na Guiné-Bissau já ter sido experimentado por nós e já ter tido uma avaliação no passado. Quando a UA chega ao princípio de tolerância zero em relação a golpes de Estado é porque, independentemente de acções de consciencialização, também é necessário formar um princípio muito claro que todo o mundo possa compreender e possa sentir-se obrigado a respeitar. Quem não cumpre com as regras de jogo não pode esperar qualquer situação de benevolência da comunidade internacional. Isto para dizer que apesar de afirmar que compreendermos e de nunca termos deixado de dialogar com a CEDEAO, é a própria complexidade do assunto que leva a constatar que infelizmente não foi possível chegarmos a um entendimento tangível na resolução do problema da Guiné-Bissau. Mas mais uma vez a coisa não ficou parada. A CEDEAO vai fazendo acções no terreno, nós evitamos qualificar essas acções, tentamos é contribuir com o nosso cepticismo em relação a alguns aspectos desse programa e alguns alertas em relação a situações que pensamos conhecer, apesar de não subscrevermos esse percurso, que tenha menos probabilidades de dar mal. O nosso objectivo não é provarmos que somos capazes de fazer melhor do que a CEDEAO. O nosso objectivo é encontrar uma solução que seja durável e seja eficaz para a Guiné-Bissau. Se isso passar pela solução que a CEDEAO está a tentar implementar na Guiné-Bissau, muito melhor. O nosso cepticismo só tem a ver com o facto de termos alguma experiência e de acharmos que temos razões para não estarmos muito convencidos de ser essa a nossa solução.
O ministro interino dos Negócios Estrangeiros da Guiné-Bissau, Faustino Imbali, sugeriu que o país pode romper com a CPLP caso prossiga o boicote àquele Governo.
Estamos numa situação em que tentamos conservar algumas pontes de diálogo sem legitimar poderes que os nossos estados soberanamente decidem não legitimar, mas também sem excluir desse diálogo a população guineense, portanto eu penso que não há esse risco. A decisão da pertença a uma organização internacional é tomada no exercício pleno de soberania, e eu não penso que o ministro esteja a traduzir aquilo que é a vontade soberana do povo guineense. A única autoridade que dever ser reconhecida à frente dos nossos povos é aquela que resulta da expressão livre por parte dos respectivos povos. Agora, estamos numa situação anormal e é preciso encontrar soluções. Não subscrevemos a estratégia da CEDEAO mas continuaremos a colaborar para encontrar uma solução. Eu conheço muito bem o ministro Imbali, portanto estou perfeitamente à vontade para dizer que se estivéssemos frente a frente, e se eu lhe perguntasse o que faria se um processo democrático fosse interrompido por meios ilegítimos, ele teria a mesma resposta que eu tenho. A diferença é que ele está no terreno, está a tentar gerir uma governação e, para esse efeito, está a minimizar alguns princípios. Eu não estou a gerir nada. Eu estou junto de uma instituição da qual a Guiné-Bissau é membro e que a Guiné-Bissau subscreveu os princípios da organização antes do 12 de Abril, antes de tudo o que tenha acontecido. Aquilo que estamos a tentar aplicar na Guiné-Bissau foi assinado pela própria Guiné-Bissau.
Em tempos de crise, e em termos de concertação económica, o que podemos esperar de Maputo?
Há um debate que se está a instalar em todos os nossos países e este é um momento interessante que a CPLP está a viver. A CPLP não vai poder ficar no cimo do muro durante muito tempo. Ou transpõe o muro, ou cai deste lado. Por isso é que este é um momento especial. Definitivamente, as nossas comunidades despertaram para aquilo que a nossa comunidade representa. E despertaram para o conjunto de oportunidades que podemos representar. Então, agora, está perante nós o desafio de transformar essas oportunidades em ganhos concretos. Se formos capazes de apontar mecanismos para que isso se transforme em ganhos concretos, nós vamos transpor o muro. Não provarmos isso, vamos perder credibilidade. E é importante que todas as instâncias da CPLP, dos chefes de Estado aos cidadãos comuns, se sintam envolvidos no processo. Porque se por um lado a definição de grandes políticas orienta a organização, ela não pode fazer muito mais que isso. Tem de ser o cidadão comum, o operador económico, o académico, o estudante, o profissional a utilizar os instrumentos para verificar se estes levam ao resultado pretendido. Sobre a crise, eu gostava de insistir noutro ponto. Quando falamos da crise, hoje, há uma tendência muito forte de virarmo-nos para a Europa do euro. Eu começo a ver isso com muita preocupação. Porque mais uma vez, a meu ver, é uma tentativa de reduzir, simplificar a questão. Há uma questão sobretudo monetária, uma forte concentração da discussão sobre as medidas correctivas que se vão acordando em Bruxelas, quando eu penso que todos já perceberam, mesmo os menos conhecedores, que é sobretudo um problema económico. Obviamente, e como já disse, se os países não desaprenderam a produzir, então o problema está no mercado, no consumo, no desafio de encontrar novos nichos de crescimento que possam sustentar o funcionamento das unidades produtivas da Europa. E é aí que está o essencial da oportunidade que se nos oferece. Se a Europa transformar isto numa redundância que se chama euro, há muito pouco espaço de intervenção para as nossas economias. Porque não sendo parte do euro, temos muito pouco a fazer. Mas se realmente se mantiver aberto o escopo do tratamento deste assunto, que é um problema económico, eu penso que Portugal, como representante europeu da nossa comunidade, o Brasil como representante das Américas, cinco países africanos e aquilo que Timor hoje representa, podiam e deviam dar um sinal de capacidade de resolução do problema.
Mas que solução lusófona é essa?
É necessária uma política comum. Não estou a falar de um mecanismo empresarial. Estou a falar de uma política económica. Não estou a pretender que a CPLP substitua a UE em nenhuma das suas componentes, o que estou a dizer é que cada um dos nossos países integra comunidades económicas de algum peso, onde se podem criar oportunidades de produção e de escoamento. A falta de liquidez é uma falsa questão. Estamos permanentemente a criticar a solução encontrada pela China, mas afinal o que a China faz? A China limita-se a reconhecer que se os países podem não ter no formato tradicional a tal liquidez para entrar nos mercados, têm os recursos necessários para participar no jogo económico. Faz-se o entrosamento desses dois interesses e a economia funciona. Porque é que não fazemos a mesma coisa? Porque é que não podemos ver com mais seriedade e determinação a disponibilidade manifestada, por exemplo, de Timor-Leste?
De que fala em relação a Timor-Leste?
Timor-Leste, aqui por duas vezes, tanto através do Presidente da República como do primeiro-ministro, colocou aqui a questão da compra de dívida. Não disseram simplesmente que estavam cá para comprar dívida. Disseram que tinham uma reserva financeira e que estavam disposta a introduzi-la no mercado comum. Portanto, não há tanta falta de liquidez como isso.
Vamos falar por exemplo da população consumidora. Temos professores desempregados em Portugal quando não há escolas no interior da Guiné por falta de professores. Há aqui qualquer coisa que nos está a impedir de utilizar até ao limite as nossas potencialidades. Porque é que Portugal há-de continuar a colocar professores no interior da Guiné só ao abrigo daquela cooperação que significa dar? Porque é que já não é ao nível de uma cooperação que significa dar e receber, e assistir as economias ao nível que lhes permita dar alguma coisa? Portugal neste momento tem dificuldade em manter mecanismos de cooperação porque não tem onde ir buscar para sustentar esse formato. Então dialoguemos com transparência no sentido de fazer todas as entidades compreender que há necessidade de criarmos um fusível que seja compatível a todos e que possa conectar as nossas políticas.
A Associação de Universidades de Língua Portuguesa pede apoio financeiro para a implementação de um programa de intercâmbio académico lusófono. A CPLP está disponível para ajudar?
Nós aprendemos de forma errada essa questão da cooperação. Os nossos países, sobretudo os africanos, estiveram muito tempo submetidos a programas de ajustamento estrutural derivados do Consenso de Washington (FMI e Banco Mundial), e então muitas vezes ainda hoje quando falamos de cooperação há sempre um entendimento de que alguém tem de dar e alguém tem de receber. E então se surge uma organização que não tem vocação de dar ou de receber, questiona-se logo se a sua existência faz sentido. E este é um grande problema com o qual a CPLP se depara. Quando dizemos que a CPLP não é uma organização doadora, não é uma entidade financiadora, muitos estados membros e cidadãos da nossa comunidade perguntam ‘então, para que é que serve?’. Ora, eu penso que a actual conjuntura política, económica e social vem talvez ajudar-nos a compreender que é exactamente organizações como a CPLP que fazem sentido. É o nosso momento. Porque não é realista esperar e pensar que há uma organização vocacionada para dar. Para tal existir, é porque está a receber de algum sítio. Mesmo o FMI e outros recebem de algum sítio e o dinheiro emprestado tem de ser rentabilizado de alguma forma. Eu penso que a CPLP mesmo não tratando a componente financeira como prioridade deve poder concertar políticas que permitam a estes estados criar mecanismos de interacção que possam criar escala, e ao criar escala possam realmente permitir retornos mais positivos. Como por exemplo em Timor-Leste, que começa a ser vista como porta africana na Ásia, como representante de uma entidade europeia na Ásia, como uma oportunidade para o Brasil, que estuda produções conjuntas para poder exportar para o mercado asiático um produto ‘made in Timor’. Este é um exemplo muito concreto do que a CPLP deve representar. Muita gente pensa que falar em política é voltar à retórica de sempre. Mas o ponto de partida dever ser a política. Sobre o ensino superior e outras áreas, porque é que os estados da CPLP não adoptam internamente aquilo que acordam em conjunto? Há encontros sectoriais, e define-se por exemplo um plano de acção comum de saúde. Mas isso não basta. No programa nacional de saúde português eu devia encontrar o reflexo de este ser parte de um programa comum. Quando isso começar a acontecer, então sim nós vamos poder tirar benefícios disso. Porque a partir desse momento, quem tiver um relacionamento de Portugal vai beneficiar de ter um relacionamento não só com Portugal, mas também com o Brasil, África e Timor. E isso ainda não está a acontecer.
E no caso concreto do ensino superior, isso quer dizer que estes intercâmbios dependem sobretudo das políticas de cada estado membro e não da ajuda da CPLP?
Sim. Quer dizer, a CPLP e o secretariado pode e deve servir de estrutura aglutinadora e facilitadora. Mas não pode esgotar-se nisso. A frustração é que, muitas vezes, tendo conseguido congregar os oito países, e tendo daí resultado uma resolução em como temos um programa comum, parece que o processo termina aí e que o objectivo está cumprido. Não, esse é o ponto de partida! A partir do momento em que temos uma política comum, essa política tem de ter reflexos na política interna de cada país, porque são esses países que são executores dessa política.
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