Glória Lucas, 56 anos, sofre de lúpus e várias doenças ósseas que a obrigam a consultas de vigilância no máximo de três em três meses. Deixou de ser acompanhada no final de 2011 porque os 379 euros que recebe da pensão de invalidez mal chegam para sobreviver.
Todos os dias o ritual é o mesmo. Uma sucessão quase infindável de comprimidos, de manhã até ao deitar. Dezoito, no total. Vinte e dois à quarta-feira. Não é para menos. Glória Lucas, 56 anos, sofre de lúpus, uma doença auto-imune que lhe atacou os ossos e as articulações e lhe provocou osteoporose, osteoartrose e artrite.
A doença e a elevada dose de medicação, que é agressiva e carregada de efeitos secundários, obrigam-na a fazer análises e a ter consultas de vigilância com muita regularidade. No máximo, de três em três meses. Em fases mais agudas, pelo menos uma vez por mês. Mas Glória deixou de ser acompanhada no final de 2011.
"Já faltei a consultas e a exames porque não tenho dinheiro para o transporte", explica. Recebe 379 euros de pensão de invalidez e paga 145 euros de renda. Sobram-lhe pouco mais de 200 euros para comer, pagar as despesas da casa e comprar a medicação.
O dinheiro não estica o suficiente para os mais de 100 quilómetros que a separam do Hospital de Santa Maria, em Lisboa, onde tem de ser seguida para ter acompanhamento especializado. Dantes, o centro de saúde de Peniche, onde mora, passava-lhe uma credencial para o transporte, que lhe permitia reaver a 100% o custo da viagem de camioneta até à capital, depois de devidamente carimbada no Santa Maria. Mas o ano passado o médico de família informou-a de que a Segurança Social tinha deixado de pagar o reembolso das deslocações.
A única possibilidade de voltar a ter transporte gratuito era em ambulâncias dos bombeiros, mas apenas se o médico do Santa Maria autorizasse. O que não aconteceu. "Lá, disseram-me que só autorizam em casos extremos, como acamados, doentes com cancro ou doentes renais crónicos. Compreendem a minha situação, mas dizem que são as regras da troika, que mandou cortar no transporte." Perante a recusa, Glória Lucas deixou de fazer análises.
"A última vez que fui à médica, já depois de algumas faltas, ela perguntou-me como é que eu quero ser tratada se não vou às consultas e não faço os exames. Eu perguntei-lhe como é que ela quer que eu faça se não tenho dinheiro. Ficou calada. E ficámos assim."
Por todo o país, pessoas com baixos rendimentos estão a faltar a consultas, exames e tratamentos por não conseguirem pagar as deslocações. Governo reconhece que há um problema e vai mudar a lei. Mesmo estando isentos de taxas moderadores, há doentes que ficam sem tratamento porque nem sequer conseguem chegar à porta do Serviço Nacional de Saúde (SNS). Estão previstas deslocações gratuitas para quem precisa de assistência e tem baixos rendimentos, mas a lei nem sempre é cumprida.
Obrigados pela troika a cortar cerca de 54 milhões de euros no transporte não urgente de doentes, hospitais e centros de saúde estão a racionar as credenciais. Muitas vezes fica de fora mesmo quem tem direito. O Expresso encontrou vários casos de pessoas que deixaram de se tratar por não conseguirem pagar a deslocação ao médico.
Segundo as regras em vigor, beneficiam de transporte gratuito os utentes com menos de 419 euros de rendimento mensal do agregado familiar (seja qual for o número de elementos) e situações clínicas incapacitantes como doenças neuromusculares e ortopédicas, doenças oncológicas ou sequelas motoras de doenças musculares.
Muito em breve será publicado um novo diploma que sobe dos 419 para 628 euros mensais o limite de rendimentos para se ter acesso ao transporte gratuito. A nova legislação vai ainda alargar este direito a quem tem de recorrer ao SNS pelo menos oito vezes por mês. No caso dos doentes oncológicos, estará sempre garantido.
Ao Expresso, o secretário de Estado da Saúde, Manuel Teixeira, salienta ainda que a nova lei dará ao médico a possibilidade de prescrever transporte gratuito a casos que a sua "sensibilidade ética" dite que também devem ser beneficiados, mesmo que não cumpram os critérios previstos.
Estado deu mais de mil milhões a fundações. Saiba quem recebeu mais
O Estado deu apoios financeiros públicos a fundações de 1.034 milhões de euros, entre 2008 e 2010. Segundo o levantamento feito pelo Governo, e tornado público esta quinta-feira, a Fundação para as Comunicações Móveis (FCM), que geria o programa de atribuição dos computadores Magalhães, foi a entidade que mais apoios públicos recebeu, num total de 454,4 milhões de euros.
Na Madeira, a Fundação Madeira Classic, sendo pública de direito privado, revela que foi criada pelo Governo regional e pela orquestra da região. Não aponta qualquer beneficiário, mas nem por isso deixou de receber mais de dois milhões de euros do Estado.
Já a Fundação Social-Democrata da Madeira não apresenta fundadores, mas o nome diz tudo: tem património de 12 milhões e o benefício do Estado é isenção de impostos sobre o património, no valor de quatro milhões de euros.
No site da fundação, a última actividade registada é de 2010, quando se anuncia a
compra da casa onde Alberto João Jardim viveu até aos 30 anos, com o argumento de que o presidente do Governo Regional se iria retirar em 2011. Mas a Fundação Social-Democrata da Madeira, criada há 20 anos, tem como finalidade dar apoio aos desfavorecidos, crianças e mães solteiras.
Em comum, a maioria das fundações privadas tem a característica de não divulgar os seus criadores. O Governo permite e diz que, por lei, têm direito ao sigilo as fundações que nasceram antes de 2012, ou seja, todas as que estão em análise. Esta é uma vantagem frequente de muitas fundações privadas.
A Fundação Oriente, de Carlos Monjardino, recebeu 1,5 milhões dos cofres públicos. Além disso, gozou de isenções patrimoniais de quase 17 milhões.
Já a Fundação Minerva, dona da Universidade Lusíada, onde estudou o primeiro-ministro, Pedro Passos Coelho, recebeu mais de 400 mil euros. Goza ainda de isenções de impostos no valor de 11 milhões.
Também há quem ganhe nos dois campos. É o caso da Fundação Mário Soares, do antigo Presidente da República, que recebeu 1,33 milhões do Estado e ficou isenta do pagamento de 220 mil euros de impostos ao património.
Agora, o Governo quer cortar no sector das fundações e prevê poupar entre 150 a 200 milhões por ano só com os cortes do financiamento público. No levantamento feito pelo Governo,
foram avaliadas 174 fundações ligadas ao sector social e mais 190 privadas, públicas de direito privado ou público-privadas, entre 2008 e 2010.
Segundo o relatório, destas 190 há um total de 130 que vão ver reduzidos os apoios do Estado, num corte total ou parcial de 30%. A estes cortes acrescem as diminuições nos apoios fiscais que podem ainda ser aplicadas.