A sofreguidão com que se retiram dos nossos tribunais litígios que durante séculos lá foram tramitados e resolvidos de forma soberana levanta, a qualquer pessoa séria, as maiores suspeitas sobre os verdadeiros fins dessas opções. Parece que, de repente, os órgãos de soberania especificamente criados para administrar a justiça deixaram de ter qualquer utilidade ou capacidade para cumprir essa função constitucional. Tudo parece ser legítimo para fugir dos tribunais ou para impedir as pessoas de os procurarem. Multiplicam-se os julgados de paz, os tribunais arbitrais e os centros privados de mediação de conflitos laborais, familiares e criminais. Tudo serve para fazer justiça exceto os órgãos que o Estado criou exclusivamente para isso; todos podem fazer justiça menos os magistrados.
Argumenta-se que alguns desses meios são mais baratos, mais informais e mais próximos das pessoas, mas ninguém justifica por que é que os tribunais são tão caros, tão formalistas e tão distantes dos cidadãos. Outros tornam-se insuportavelmente escandalosos pela autêntica privatização da justiça a que procedem. Os centros de mediação estão virados para o lucro e querem obrigar as pessoas a fazerem as pazes com base em acordos quase sempre leoninos em favor das partes económica e culturalmente mais fortes. Para isso afastam os advogados, pois estes, seja qual for o processo ou a instância, igualizam as partes perante o julgador, impedindo que as desigualdades sociais, económicas e culturais assumam relevância processual.
É, porém, nos chamados tribunais arbitrais que se levantam as mais sérias apreensões. Não está só em causa o facto de as partes escolherem os juízes, violando, assim, o princípio do juiz natural; não está só em causa o facto de esses tribunais funcionarem num registo de autêntica clandestinidade, já que não existe qualquer publicidade das suas decisões nem da tramitação dos processos; já nem sequer surpreende a promiscuidade resultante de a função dos juízes ser desempenhada, em regra, por advogados e o papel dos advogados ser verdadeiramente desempenhado por quem está no lugar dos juízes. O que está, de facto, em causa são as suspeitas crescentes de que tais tribunais são usados para atingir fins ilícitos, sobretudo quando estão em «confronto» interesses públicos e privados; o que está em causa são as suspeitas de que são usados cada vez mais para legalizarem transferências ilícitas de recursos públicos para bolsos privados.
Não tenho nada contra a arbitragem entre privados, mas tenho tudo contra a sua utilização pelo Estado e outras entidades públicas, em contratos público-privados, com renúncia aos tribunais soberanos e ao direito de recurso, apesar de sistematicamente saírem derrotados na «justiça arbitral». A minha oposição é ainda maior à chamada arbitragem fiscal que, tudo o indica, foi criada propositadamente para legalizar fugas aos impostos de grandes contribuintes e repartir entre privados e decisores públicos parte significativa das suas dívidas fiscais.
O recurso à arbitragem garante que certos negócios público-privados não sejam escrutinados por magistrados independentes, mas sim legitimados por advogados da confiança das partes que, para tal, são metamorfoseados em juízes. A opção pelas arbitragens evita também o risco de se mexer em coisas que possam revelar as generosas comissões que essas negociatas, em regra, propiciam aos decisores públicos corruptos.
Que essas práticas se estejam a generalizar em Portugal, até com o beneplácito público de membros do Governo, já não espanta ninguém. O que espanta já não são sequer os ataques e os insultos que os beneficiários da corrupção dirigem a quem a denuncia, mas sim o silêncio generalizado das pessoas honestas.
NOTA: Estou em Moçambique há cinco dias e, ontem, pela primeira vez nas últimas duas ou três décadas, voltei a sentir orgulho em ser português. O povo do meu país saiu à rua, de norte a sul, para dizer basta a um governo de fanáticos, de incompetentes e de mentirosos que usa o poder para favorecer os amigos e familiares, para perseguir quem o critica e para lançar a maioria da população na miséria
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