A imagem medieval do Mundo
Cada época histórica tem sua própria imagem do Homem e
do Mundo. Certamente ela é influenciada por uma série de percepções e
certezas que passam pela religião, pelo estágio material e pelo nível
geral das crenças e dos hábitos das sociedades que a compõe. Não foi
diferente disso a Idade Média que apresentou uma Imago Mundi
completamente distinta daquela que vigia nos tempos do paganismo e da
que iria surgir nos tempos modernos .
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A Discussão Sobre o Santíssimo Sacramento (afresco de Rafael Sanzio no Vaticano, 1510-1)
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Deus colocou o homem no mundo para não ficar só frente
ao Cosmo. Esta era a explicação dos teólogos medievais em resposta a
qual teria sido o motivo do surgimento de Adão e Eva. Assim sendo, seus
descendentes trazem consigo a marca da divindade. O Homem é uma Imago
Dei, isto é, uma imagem de Deus, trazendo em si, na sua anatomia e na
sua fisiologia, órgãos e sentidos que apontam para uma similitude com o
todo celestial.
A cabeça, por exemplo, é um planeta, seus
olhos são o Sol e a Lua, o espirro é o vento.., suas sete aberturas
estão em consonncia com os sete tons da harmonia universal, a alma,
por seu lado, é o fogo que quando apaga faz o corpo perecer, etc. Tudo
no Homem é um microcosmo, uma fração de algo bem maior, colossal, posto
em ação pelo Todo-Poderoso.
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O Homem Zodíaco: anatomia humana condicionada pelos signos
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Entende-se assim o motivo que levava a medicina medieval
apelar para o horóscopo e para a astrologia, pois acreditava que a
posição dos planetas nos 12 signos do Zodíaco de algum modo afetava a
saúde dos homens e das mulheres, do mesmo modo que a Lua condicionava
as marés e o Sol às boas safras. Cada órgão humano obedecia aos humores
de um signo: Áries regia a cabeça, Sagitário as pernas, Peixes conduzia
os pés, e assim por diante. Por conseguinte, como assegurou o sábio
Avicena (980-1037), era “a má disposição dos céus quem rapidamente
empeçonhenta os corpos”. Devia-se ao ar corrompido pelos astros a
responsabilidade pelos surtos de epidemias que apavoravam e devastavam
a sociedade medieval.
Exatamente por isto os estudantes de
medicina da Universidade de Bologna terem que estudar astrologia por
quatro anos, para que quando aplicassem a sangria num paciente ela não
fosse feita durante um estágio não conveniente da Lua (a Lua cheia,
estavam certos, provocava uma hemorragia em excesso).
Não
havia, príncipe, conde ou barão daqueles tempos que não tivesse um
astrólogo a sua disposição, mesmo que a Igreja Cristã fosse hostil a
esse costume. Ainda no Renascimento, um renomado pesquisador e
matemático e gênio como Johannes Kepler tirava seu rendimento
preparando almanaques com previsões e elaborando mapas astrais para a
corte do duque de Wallenstein.
Como uma exposição interessante
dessa visão geral que a teologia medieval tinha das coisas do Céu e da
Terra, a sua Imago Mundi, foi a elaborada por Honório de Autum um
seguidor de Johannes Scotus Eriugena (c. 815–877) sobre como o famoso
teólogo via o Universo, a Natureza e a História:
1 - Universo
Universo
“Mundo” deriva de “motus”, o mundo está em perpétuo movimento.
O mundo é um ovo
O mundo é redondo como uma bola e similar ao ovo. Na beirada externa há
uma casca, o céu que envolve o mundo inteiro, debaixo dela, como se
fora a clara do ovo, o éter puro, que serve de envoluntório para o
movimento, do mesmo modo como a clara encerra a gema. Na parte mais
central dele, no germe, está a Terra.
A Terra
No seu centro está o Inferno, com fogo e enxofre tendo a forma de um cone vulcnico.
O Inferno
É um lugar de tormentos, prisão hedionda cheia de fogo. Divide-se em
duas partes. Na parte central dele é o Erebo, habitado por dragões e
serpentes. No Aqueronte encontram-se vapores nauseabundos, havendo
ainda muitos outros lugares piores ainda.
Os 4 elementos
A Terra
O mais pesado dos elementos, por estar no centro exato do mundo, conforme disposição de Deus
A água
Elemento leve, circunda e penetra a terra. Água significa “aequalitas”,
superfície plana ou igual. O abismo é a parte mais profunda do mar. As
marés, baixa e alta, dependem das inalações da Lua
Ar e os ventos
Assemelha-se ao vácuo e estende-se da terra à lua. É uma espécie de
água mais leve, por isso as aves voam por ele como os peixes nada na
água. nele habitam os demônios, aguardando o Dia do Juízo. É do ar que
eles tiram seus corpos quando querem aparecer aos homens. Os ventos por
sua vez são simples ondas de ar. Seu hálito condensado com água
transforma-se em nuvem. O choque entre as nuvens produz raios e
trovões, o fogo produz relmpagos.
O Fogo
É o
quarto elemento e chama-se “ignis, quase non gignis”, é o mais nobre
deles, estendendo-se da Lua até o Firmamento. Confunde-se com o éter
pelo seu brilho ininterrupto e por ser uma espécie de ar puro.
Separa-se entre o Fogo da Terra, criado pelos homens, mais bando, e o
Fogo do Inferno, criado pela Justiça de Deus para punir os réprobos e
os condenados, fazendo com que, segundo Tertuliano, “cada condenado
converter-se-á numa fornalha ardente”.
A estrutura do Universo
Os planetas
A Lua é o primeiro dos planetas e a menor das estrelas. O Sol e´o
quarto planeta (depois de Mercúrio e Vênus), e é oito vezes maior do
que a terra. Há ainda três outras esferas onde se movem Marte, Júpiter
e Saturno.
Harmonia das esferas
A revolução dos
planetas da origem a sons maviosos, que produz harmonia em consonncia.
Todavia não escutamos tal música por ser demasiado forte ao ouvido
humano.. A escala da música vai da Terra ao Firmamento, havendo sete
sons nesse espaço. A Terra é separada dos demais planetas por meio de
tons (um tom inteiro é igual a 15.625 milhas) Além dos sete tons
existem mais nove “consonncias” (que correspondem as nove musas dos
filósofos).
O Céu
Acima do fogo acha-se a
oitava esfera, o Céu (distante 109.375 milhas, ou 203 mil km, da
Terra). Ele gira em enorme velocidade ao redor da Terra, mantendo-se
sempre eqüidistante do centro dela. Firmamento é o céu superior,
situado em meio às águas condensadas em cristais, apresentando-se
ornado de estrelas. É composto por dois pólos mas só vemos um deles, o
pólo norte, sobre os quais o céu gira.
As Estrelas encontram-se fixas no céu. A Via Láctea resulta da projeção luminosa de todas as estrelas.
O Céu das Águas e o Céu dos Espíritos
O Céu das águas está acima do firmamento e é aquoso devido às nuvens
que lá se encontram. Já o Céu dos Espíritos é a morada dos anjos e das
almas bem-aventuradas: é o paraíso do paraíso.
O Céu dos Céus
Bem além do paraíso, imensamente distante, encontra-se o Céu dos Céus, a Morada de Deus.
Conclusão
O Universo medieval caracteriza-se pela coesão singular e pelo
simbolismo religioso. É um imenso globo material com dois pólos
espirituais. A matéria religiosa vai até o céu dos espíritos
bem-aventurados e a inferior desce até o inferno dos espíritos
condenados. As nove penas do inferno correspondem as nove dos
bem-aventurados do céu. Os homens ocupam um posto intermediário entre
estes dois pólos, até que ocorra a separação entre os bons e os maus,
indo então se incorporarem a um ou ao outro.
2 - A Natureza
A etimologia
A
existência das coisas em si é secundária. Nos Bestiários e Lapidários
constam animais e objetos que não existem. O que interessa ao homem
medieval não é a classificação das coisas, mas o conhecimento das
forças místicas, ocultas em seus nomes. Por exemplo: havia crença de
que determinadas pedras tinham poder mágico e medicinal de cura.
A analogia
Por mais diversas que sejam as coisas existe “correspondência” ou
analogia entre elas. O Homem é um microcosmo estruturado em analogia
com o macrocosmo: sua carne é a terra, seu sangue é água, seu hálito é
o ar, sua cabeça é redonda tal como a esfera celeste, sendo que seus
olhos são o sol e a lua. Suas sete aberturas correspondem aos sete tons
da harmonia das esferas celestes. Os sentidos do homem resultam do fogo
celeste, do ar superior e ar inferior, e da Terra.
O simbolismo
Um ser material pode exprimir uma realidade material. Por detrás da
matéria há um espírito impresso pelo Criador. Deus manifesta-se por
duas coisas: a Sagrada Escritura e a Natureza, e entre as duas
revelações divinas vige um paralelismo. As palavras da escritura
enunciam verdades morais, enquanto as coisas da natureza possuem um
significado oculto.
3 - A História
O conceito de história
A história é um grande drama escrito por Deus e interpretado pela
humanidade. Divide-se em três acontecimentos: a Criação, a Redenção e o
Último Juízo, havendo dentro de cada um deles subdivisões em número de
sete. Há somente uma História Universal uma História Santa (não há
especializações, como história de uma nação ou de uma raça). Tudo gira
ao redor da Encarnação e da Redenção de Cristo. “Nosso rei é o verbo
Encarnado, que veio ao mundo para dar combate ao demônio”.
O método da História
Começa pela Cronologia, coligindo os dados sobre povos e soberanos que
se sucederam desde a criação. Os fatos não passam de sinais a serem
interpretados de maneira “tropológica” (quando exprime uma verdade
moral) ou “alegórica” (quando alude a um mistério da fé). Sempre a
interpretação religiosa predomina sobre qualquer outra. Somente mais
tarde, por influencia da física aristotélica, avançou-se para as
origens da ciência moderna.
Segundo: Honório de Autum (que reproduz Scoto Erígena).
Local:Regensburg (começo do século XII)
Obras "Clavis physycae" e "De imagene mundi" e "Elucidarium sive Dialogus..."
Fonte: Philotheus Boehner - Etienne Gilson - História da Filosofia Cristã. Petrópolis: Editora Vozes, 4ª; ed. 1988, págs. 276-282.