A escrita foi, desde muito cedo, uma forma de distinguir entre povos civilizados e povos primitivos. Aquando do século XIX, especialmente, esta noção estava no seu auge. Muitas recolhas de tradições orais feitas neste século ignoraram pura e simplesmente todo o contexto em que essas tradições se inseriam e, consequentemente, não puderam compreender o papel essencial da literatura oral nessas comunidades.
Quando formas de literatura oral entram em choque com a fixação pela escrita, os textos orais são obrigados a mudar e, infelizmente, perdem parte do seu valor. Um exemplo particularmente adequado é o do conto. Os contos populares tornaram-se famosos com as recolhas levadas a cabo por intelectuais como Perrault ou os irmãos Grimm. Conseguiram compilar uma grande quantidade de contos junto da população rural, que na altura os contava nos serões, deixando a poesia - cantada ou recitada - para acompanhar os trabalhos do dia-a-dia.
Estes livros de contos eram, inicialmente, considerados impróprios para as crianças; mas bem depressa se converteram em literatura infantil, depois da devida censura, para apagar alguns elementos mais chocantes e inadequados. Hoje em dia, os contos infantis (ex-contos populares) perderam grande parte da violência que existia nas versões originais: a madrasta da Branca de Neve já não é obrigada a dançar até à morte com sapatos em brasa; poucos conhecem a história do rapaz que obriga o irmão a dar os olhos em troca de um pedaço de pão; ou a da madrasta que tira os olhos à enteada e que acaba morta pelo carrasco do príncipe, os ossos a servirem de cadeirinha à nova princesa e a pele usada para construir um tamborzinho. As histórias facilmente censuráveis permaneceram, mas aquelas cujas intrigas dependiam de uma violência física maior foram esquecidas nas antologias de contos populares.
Mas qual é a função do conto, tal como a literatura oral o concebeu, e como é que o conto é afectado na sua transição para a literatura escrita? Recordemos as características básicas da palavra falada e da palavra escrita:
Oralidade |
Escrita |
- poder criador ou fertilizador
- mutabilidade (evolui e muda com o passar do tempo)
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- imutabilidade
- imortalidade
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O conto caracteriza-se pela sua variedade: uma mesma intriga origina uma grande quantidade de versões, dando força ao provérbio que "quem conta um conto acrescenta-lhe sempre um ponto". Quantas versões não teremos já lido e visto da Branca de Neve, da Cinderela ou da Bela Adormecida? Essa variedade advém precisamente da noção de que o conto pertence não a um indivíduo ou conjunto de indivíduos, mas a toda a comunidade, o que confere o direito ao contador de a adaptar ao seu público. Mas o aspecto mais importante do conto não reside na sua variedade que, aliás, a escrita não conseguiu diminuir, por muito que lhe vá retirando elementos ditos traumatizantes, sexistas ou antiquados.
Recordemos os serões tradicionais da população rural, especialmente os anteriores ao advento da televisão (ainda existem aldeias onde a electricidade não chega e que, por isso, conservam ainda o serão tradicional). A família reunia-se junto à lareira (especialmente em climas frios) ou ao candeeiro; as mulheres cosiam, bordavam ou faziam renda enquanto que os homens reparavam algum instrumento ou descansavam. E contava-se. Contos, anedotas, canções, versos, lenga-lengas. E, nesse momento, o grupo familiar que passava o dia separado - os homens no campo, as mulheres em casa e no campo, as crianças na escola e a ajudar os pais no trabalho - tinha uma oportunidade de se reunir, de trocar impressões, ideias, de transmitir o código de vida social que está imbuído nos contos populares.
- Papel Social do Conto na Sociedade:
- estruturação do real, das experiências vividas no dia-a-dia da comunidade
- função catártica - representa tensões sociais, permitindo expulsar a violência latente
- utiliza o código da vida social quotidiana - laços familiares e comunitários, destino individual, prosperidade local...
- reforça a coesão do grupo
Os contos, no seu contexto social, são um elemento indispensável à sobrevivência de uma comunidade: a transmissão dos valores que regem a comunidade; a proximidade entre os vários indivíduos ao reforçar os laços familiares e comunitários; a resolução de conflitos latentes; a reflexão sobre o real, transposto para a ficção com contornos fantásticos... Mas, ao ser transposto da oralidade para a escrita, o conto popular perdeu a sua vitalidade. Basta comparar:
Conto Popular |
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Conto Infantil |
- grande variedade de contos (a nível de intrigas)
- constante evolução das histórias, reflectindo os valores, desejos e necessidades da época em que se conta
- auditório composto por um grupo social, englobando idosos, adultos, jovens e crianças
- participação activa na relação contador-ouvintes
- actividade colectiva e socializadora
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- diminuição do repertório dos contos
- cristalização das histórias em formas que, a pouco e pouco, deixam de reflectir os valores, desejos e necessidades que se alteram ao longo da história
- auditório restrito a um destinatário único: a criança
- inactividade na relação leitor-livro
- actividade solitária e isoladora
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O conto, tal como o mito, é uma das pedras fundadoras das sociedades humanas. Mas apenas no seu contexto original, apenas no envolvimento do auditório que não se limita a receber um texto, mas que participa - reflectindo, questionando - de modo a fomentar a imaginação, a criatividade, a memória; e de modo a compreender os códigos que regem a vida social, para que os indivíduos saibam integrar-se na sociedade. A força criadora do conto "contado" reside precisamente na possibilidade do receptor também poder ser emissor. Perante o livro, o leitor (a criança ou o adulto nostálgico) limita-se a receber uma história imortalizada. Perante o contador, o ouvinte (criança ou adulto) recebe uma história em que ele próprio pode participar: pode perguntar, prever ou sugerir um desfecho; pode inclusivamente ser convidado a tornar-se ele próprio contador.
Talvez os druidas tivessem razão em não querer escrever os seus conhecimentos. Ao imortalizar as suas tradições no papel, os monges cristãos "mataram-nas": retiraram-lhes a sua vitalidade, retiraram-lhes a força da palavra falada que as fazia crescer e mudar de acordo com os códigos da própria sociedade. A literatura oral é uma cultura viva, dinmica e perecível; a literatura escrita guarda para a posteridade uma fotografia que sobreviverá às mudanças de mentalidade e de valores. Mas é uma fotografia que, mesmo quando ameaça perder as cores, teima em permanecer sem alterações.
Outubro de 2004