Verifiquemos primeiro no dicionário o significado de religião:
religião - s. f. (do lat. religio, -onis.)
1. Crença na existência de um poder superior, do qual o homem depende. (...)
2. Sistema estruturado de doutrinas, crenças, regras e práticas de uma determinada comunidade de pessoas que instituem um determinado tipo de relação com um poder superior, sobre-humano. (...)
3. Culto prestado à divindade. (...)
Agora procuremos a origem etimológica da palavra. Para a maioria dos autores, "religião" deriva do latim "re-ligare", que significa, precisamente, "religar": religar entidades que se encontram afastadas, nomeadamente o homem e a divindade. Alguns autores, porém, atribuem-lhe uma outra palavra latina como origem: "re-legere", que significa "reler". Esta designação, segundo os autores, estaria relacionada com a adivinhação - sinais, presságios, oráculos, etc. -; o homem hesita e procura confirmação em sinais e presságios que surgem à sua volta e que revelam a vontade divina.
Podemos então concordar que a religião, enquanto um sistema que institui uma relação com o divino, que liga a humanidade e a divindade, acaba por se transformar numa instituição que regula o modo como o homem utiliza o sagrado para se aproximar (ou não) do divino.
E a mitologia? Qual é o seu papel nessa regulação e administração do sagrado pela religião? Procuremos, uma vez mais, o auxílio do dicionário. Primeiro verifiquemos o que é o mito, e só depois a mitologia.
mito - s. m. (do gr. mythos.)
1. Conto ou história de origem popular e transmitida pela tradição, em que, de forma alegória ou simbólica, as forças da natureza, os factos históricos, os aspectos da condição humana... surgem personificados em deuses ou figuras heróicas. (...)
2. Representação de factos ou de personagens reais, ampliados ou deformados pela imaginação colectiva ou pela tradição. (...)
3. Representação idealizada de um certo estado da humanidade num passado ou num futuro fictício. (...)
4. Formulação do espírito sem fundamento real; o que apenas existe na imaginação. (...)
5. Exposição de uma ideia, de uma doutrina, de uma teoria..., sob uma forma alegórica e poética.
6. Concepção simplificada, muitas vezes ilusória, admitida pelos membros de um grupo, acerca de um facto, de uma ideia, um sentimento, um indivíduo... e que condiciona os seus comportamentos ou as suas apreciações. (...)
mitologia - s. f. (do gr. sacratus.)
1. Conjunto das narrativas fabulosas, das lendas ou dos mitos próprios de um povo, uma civilização ou uma religião. (...)
2. História dos deuses e heróis fabulosos da antiguidade greco-romana; mitologia clássica. (...)
3. Disciplina ou ciência que tem por objecto o estudo das narrativas fabulosas ou dos mitos antigos, das suas origens, do seu desenvolvimento e da sua significação. (...)
O mito, portanto, é uma narrativa fabulosa, que pode ser alegórica ou simbólica, um facto idealizado ou histórico, mas deformado pela tradição. De facto, há muitas histórias a que se podem chamar mitos. Por exemplo, a história de Viriato, o chefe lusitano que fez frente aos romanos, é um mito da história portuguesa: um que se baseia em factos históricos alterados pela tradição. Os poetas e escritores romnticos, por outro lado, criaram o mito do bom selvagem, segundo o qual os "povos primitivos" eram essencialmente bons porque não tinham sido corrompidos pela sociedade: este é um mito que apresenta um conceito idealizado. E depois temos mitos como o da criação do mundo, que surgem no mbito das religiões de todo o mundo: uma divindade cria o mundo e o ser humano, dando às suas criações determinadas características que explicam o aspecto e comportamentos actuais. E mesmo que a comunidade não acredite no mito como verdadeiro, ela reconhece sem dúvida a verdade por detrás das acções fantásticas; reconhece as angústias, as alegrias, as atitudes morais e imorais, as recompensas e os castigos como parte da sua própria realidade, através da simbologia ou da alegoria.
A mitologia, naturalmente, refere o conjunto dos mitos, unidos por uma cultura. A que nos interessa é a "cultura religiosa" ou a "cultura da divindade", se é que lhe podemos dar esse nome. Interessam-nos os mitos religiosos que respondem a questões fundamentais da existência humana e da realidade, dando uma razão aos porquês enquanto define os comos. Assim, temos os mitos religiosos dos gregos e, por semelhança, dos romanos unidos na mitologia greco-romana, mesmo sabendo que, a partir de certa data, esses mitos passaram a ser encarados não como expressão religiosa mas como expressão de verdades transmitidas através de aventuras fantásticas, tradicionalmente associadas a deuses. Temos também a mitologia nórdica, ameríndia, maia ou aborígene, entre muitas outras, cujos mitos revelam o pensamento religioso e cultural. E temos a mitologia judaico-cristã, onde o mito surge frequentemente como ponto de fé, ou não fosse a bíblia a detentora da verdade histórica (o que é verdade até certa medida, como veremos mais tarde).
Na verdade, os mitos religiosos surgem frequentemente nas mitologias em diferentes secções, de acordo com a sua temática. De um modo muito geral, podemos encontrar três tipos de mitos religiosos, respondendo a diferentes questões:
- mitos sobre um ou mais deuses
- mitos sobre o mundo
- mitos sobre o homem
Com estes três tipos de mitos, a mitologia religiosa de uma comunidade consegue explicar não só a existência do mundo e do homem, como o seu aspecto, as correctas relações entre os seres (ou pelo menos a razão das actuais relações), a diferença entre o Bem e o Mal (ou entre o moral e imoral), as relações a estabelecer com os deuses e as suas consequências.
Foi por esta razão que eu optei por englobar a religião sob a designação de "mitologia": porque a mitologia, como conjunto de mitos que revelam o pensamento religioso de uma comunidade, engloba certamente a religião dessa comunidade. Até porque a religião, como instituição reguladora, define regras de convivência com o sagrado e, portanto, com o divino. Essas regras surgem sob a forma de cerimónias onde o mito toma, frequentemente, um papel primordial.
As cerimónias religiosas, também chamadas de ritos, seguem determinadas regras, um padrão de acções, a que se chama ritual. E o conjunto destes ritos, no seu padrão ritual, é chamado de culto, palavra cuja origem latina, cultivare, significa cultivar, tanto os campos como o espírito. E o culto, com as sua cerimónias rituais, reflecte a tradição e os costumes.
O culto de uma divindade apoia-se no símbolo: um objecto, gesto ou palavra que representa o divino, ou uma característica do divino. As cerimónias recorrem a esses símbolos que, através do uso, entram nos costumes e, a partir dos costumes, na tradição. O costume e a tradição, conceitos bastante parecidos, fazem com que determinadas acções permaneçam na comunidade por bastante tempo, por vezes até para lá da memória que originou essas acções. Assim, não é raro dizer-se que isto ou aquilo é como é ou faz-se como se faz porque é assim que as coisas são ou se fazem. Não há razão - ela desapareceu da memória - mas apenas uma actuação que se repete incessantemente. Objectos e ideias que se transformam em símbolo de algo mas que, entretanto, se esquece a razão que originou a relação entre representação e representante, deixando apenas o símbolo.
Antes de avançar, olhemos ainda para os semelhantes costume e tradição e vejamos o seu significado. Ambos os conceitos se referem a algo que se faz sempre, ou repetidamente. Faz-se assim porque sempre se fez assim. No entanto, a tradição está mais relacionada com as ideias, os símbolos e as crenças transmitidas ao longo do tempo. O costume, por outro lado, está mais relacionado com a acção, com o modo de agir ou fazer de um determinado grupo social num dado momento histórico. De certo modo, os dois conceitos são complementares. De modo semelhante, as cerimónias rituais de uma religião unem esses dois aspectos complementares que são a ideia e a acção, o gesto, o símbolo e a prática, o dizer e o fazer. Da mesma maneira que a palavra une o pensamento e o som, a ideia e a acção (é por isso que a palavra tem um poder criativo, quase mágico, na Bíblia).