Descartes e o argumento céptico da regressão infinita
Segundo o cepticismo, teoria filosófica acerca da validade do conhecimento, nunca podemos ter certeza alguma, pois existem sempre razões para duvidar, mesmo daquilo que nos parece óbvio e que habitualmente nunca questionamos, como, por exemplo, a certeza de que o mundo físico existe e é como parece ser. Para o cepticismo radical, o conhecimento verdadeiro não é possível, isto é, nunca podemos ter a certeza de que o nosso conhecimento da realidade reproduz fielmente a realidade nem mesmo que tal realidade existe, apresentando-nos o que os cépticos julgam ser um bom argumento, podendo ser formulado da seguinte forma:
Se há conhecimento, então as nossas crenças estão justificadas.
Mas as nossas crenças não estão justificadas.
Logo, não há conhecimento.
Este argumento é válido e se for sólido, teremos de aceitar a sua conclusão; caso não queiramos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que não é sólido.
A primeira premissa parece indisputável; isto porque não parece ser possível haver conhecimento sem justificação. Mas se a segunda premissa não parece tão evidentemente verdadeira; e isto porque não é óbvio que as nossas crenças – ou, ao menos, algumas delas – não sejam justificadas.
Pretendendo o céptico que o seu argumento seja sólido, defende a sua segunda premissa recorrendo ao argumento céptico da regressão infinita, que pode ser formulado da seguinte forma:
Todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças.
Se todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças, então há uma regressão infinita.
Se há uma regressão infinita, então as nossas crenças não são justificadas.
Se as nossas crenças não são justificadas «, então não há conhecimento.
Logo, não há conhecimento.
Tal como o anterior, este argumento apresentado pelos cépticos é válido e se mais uma vez, se não queremos aceitar a sua conclusão, teremos de mostrar que pelo menos uma das suas premissas é falsa, tal Descartes fez ao tentar mostrar que o conhecimento é possível e que, portanto, os céptico estão enganados. Ou seja, em Filosofia, a principal preocupação de Descartes consistiu na refutação do cepticismo, procurando responder ao argumento céptico da regressão infinita; mostra que a primeira premissa é falsa, isto é, mostrando que não é verdade que todas as nossas crenças são justificadas com outras crenças. Mas este não é o principal problema. A Descartes não parece satisfatório mostrar que o céptico pode estar errado: ele pretende mostrar que o céptico está, efectivamente, errado e o seu principal pode ser formulado do seguinte modo: «Como poderemos garantir que o nosso conhecimento é absolutamente seguro?»
Descartes pensava que podemos ter conhecimento acerca do Mundo no sentido mais forte que o termo admite: quando conhecer implica certeza, isto é, a impossibilidade de estarmos enganados.
Esta ideia é, à primeira vista, um pouco estranha, pois deduzimos que serão os sucessivos avanços na Ciência moderna a melhor forma de provar que o conhecimento é possível.
Temos seguramente a pretensão de possuir conhecimento, e a Ciência, com o seu cortejo de êxitos (mas também de fracassos), é um exemplo dessa pretensão. No entanto, acreditar que temos conhecimento não implica conhecer realmente alguma coisa, uma vez que, não possuímos garantias de que as nossas teorias científicas são verdadeiras nem razões nos levam a pensar que a Ciência assenta em fundamentos sólidos.
Esta preocupação de Descartes de que acreditarmos que temos conhecimento não implicar conhecer realmente alguma coisa, não é assim uma preocupação tão estranha e afastada da realidade, uma vez que, Descartes viveu numa época que assistiu à ruína da Ciência antiga e medieval e à substituição da imagem do Mundo que aquela que contribuíra para manter inalterada ao longo de dez séculos.
Descartes sabia que não temos de facto conhecimento se as nossas crenças (opiniões) forem falsas. Mas pensava também que ter a certeza de que as nossas crenças são verdadeiras implica ser capaz de as justificar racionalmente, algo que os cépticos julgam sermos incapazes de o fazer, apresentando o seguinte argumento.
(1) Se não é possível justificar uma proposição A, então não é possível saber que A.
(2) Dada qualquer proposição A, é sempre possível exigir a sua justificação.
(3) Ou a série de justificações não tem um fim, e A fica por justificar, ou o pedido de justificação fica sem resposta, e A não tem justificação.
Este argumento é completamente geral, mas a dúvida que o céptico nos convida a colocar não é convincente exactamente por ser tão geral, pois não é convincente que não possamos saber coisa alguma, é aliás, a ideia oposta que nos habituamos a considerar correcta, e, mesmo que não conheçamos tudo, sabemos com certeza algumas coisas.
Admitamos que afirmo saber que A. Se for assim, tem de ser uma proposição verdadeira e a sua verdade tem de estar justificada. Suponhamos que B é uma razão para considerar A verdadeira. Neste caso, há duas possibilidades: ou eu sei que B ou B é apenas uma suposição.
Se B for apenas uma suposição, não poderei dizer que conheço B. Em contrapartida, se não for uma simples suposição, há razões para pensar assim.
Suponhamos que C é uma dessas razões. Existem de novo duas possibilidades: ou sabemos que C ou C não é mais do que uma suposição. O raciocínio anterior aplica-se a C como se aplicaria a qualquer razão D, E, F, etc., que queiramos introduzir parta justificar C. Dado a ordem das razões não ter limites, e que uma nova justificação pode sempre ser exigida, encontramo-nos perante uma regressão ao infinitivo, implicando que nenhum processo de justificação possa chegar ao fim.
Contudo, na prática, há sempre um momento em que temos de parar, normalmente porque ficamos sem nada para dizer, isto é, não somos capazes de oferecer a justificação suplementar que nos foi pedida. Para o céptico, o nosso silêncio é um sinal claro da nossa ignorncia.
Descartes, na tentativa de evitar esta dificuldade, afirma que há proposições tão evidentes que não necessitam de justificação. O facto de serem tão evidentes faz com que não tenha sentido perguntar uma vez mais por que razão se justifica aceitá-las como verdadeiras. Proposições deste género são intrinsecamente fiáveis, isto é, a sua verdade não depende de outra posição ser verdadeira.
Um exemplo de proposição intrinsecamente fiável é a ideia de eu para pensar é necessário existir. Segundo Descartes, esta ideia é intrinsecamente fiável porque a mente humana concebe-a de maneira tão evidente que, por maior que fosse o esforço, não é possível colocá-la em dúvida. São, na linguagem de Descartes, as ideias claras e distintas.
Como as proposições claras e distintas não necessitam de uma justificação suplementar, é uma proposição clara e distintas que o conhecimento pode encontrar a sua justificação última. Há um momento em que a justificação tem de parar porque atingimos um ponto onde, dada a evidência da justificação, não precisamos de mais justificações.
Para Descartes, demonstrar que o conhecimento é possível implica indicar pelo menos uma proposição intrinsecamente fiável que sirva de fundamento às restantes proposições. Esta perspectiva é designada por fundamento.
O que há de característico no fundamentalismo é o facto de todos os conhecimentos estarem ordenados hierarquicamente: na base, um pequeno número de proposições intrinsecamente fiáveis que aceitamos sem necessidade de qualquer justificação suplementar; depois, as outras proposições, aceites devido às relações lógicas que mantêm com as primeiras. Descartes irá construir a sua teoria segundo este esquema.
Para usarmos uma imagem habitual e sugestiva, digamos que o conhecimento pode ser comparado a um edifício (um edifício de proposições) cujas fundações temos de construir e cuja solidez é necessário assegurar. Tal como num edifício assenta nas fundações e delas depende para se manter solidamente ancorado, também a Ciência, no seu conjunto, é vista por Descartes como um edifício de proposições cuja verdade, em última análise, tem na sua