Como entende Descartes a ciência?
«Uma vez que todas as ciências não são mais do que a sabedoria humana, a qual permanece sempre una e sempre a mesma, por muito diferentes que sejam os objectos aos quais se aplica, e não recebe maior modificação a partir destes objectos do que a luz do sol a partir da variedade das coisas que ilumina, não se torna necessário impor limites ao espírito: o conhecimento duma verdade não nos impede, de facto, de descobrir uma outra, (…) antes a isso nos ajuda. (…) É portanto necessário convencermo-nos de que todas as ciências estão de tal modo ligadas entre si que é mais fácil aprendê-las todas ao mesmo tempo, do que isolar uma das outras. Se alguém quiser, pois, buscar seriamente a verdade, não deve optar pelo estudo duma qualquer ciência particular: pois estão todas unidas entre si e dependentes umas das outras; mas pense apenas em aumentar a luz natural da sua razão (…) para que, em cada circunstncia da vida, a sua inteligência mostre à sua vontade o que deve escolher; e em breve ficará surpreendido por ter feito progressos superiores aos daqueles que se aplicam a estudos particulares, e por ter chegado não só a tudo o que os outros desejam, mas a resultados mais belos do que aqueles que eles podem esperar.»
Regra I
«Toda a ciência é um conhecimento certo e evidente; e aquele que duvida de muitas coisas não é mais sábio do que aquele que nunca pensou nelas: parece-me mesmo mais ignorante do que ele se, acerca de algumas, formou uma ideia falsa. Por isso mais vale nunca estudar do que ocupar-se de objectos de tal modo difíceis que, sem podermos distinguir o verdadeiro do falso, sejamos forçados a admitir por certo o que é duvidoso, pois não há então tanto a esperança sem aumentar o nosso saber, quanto o perigo de o diminuir. Assim, por esta regra, rejeitamos todos os conhecimentos que são apenas prováveis, e decidimos que não devemos dar o nosso consentimento se não àqueles que são perfeitamente conhecidos e dos quais não se pode duvidar.»
Regra II
Nestas regras, segundo Descartes, a ciência é una e única, pois o espírito que a constrói é o mesmo em todos os homens e funciona da mesma maneira «por muito diferentes que sejam os objectos aos quais se aplica»: a I Regra «funda o princípio da unidade do saber sobre a unidade da luz natural da razão, comparada à iluminação do Sol»(G. Rodis-Lewis – Descartes).
Tem, assim, como ideal a universalidade, a intemporalidade.
As diversas ciências ou saberes não são senão manifestações de um saber único, já que a multiplicidade infinita das coisas separa menos do que o espírito une: por outras palavras, na perspectiva cartesiana, o fundamental não é aquilo que se conhece, mas a maneira como é conhecido.
Esta nova maneira de encarar as relações entre as ciências, baseada na identidade da actividade do sujeito cognoscente e não na natureza do objecto conhecido, vai dar origem a uma nova sistematização das ciências e a uma nova pedagogia. A ciência é um conhecimento certo e evidente, do qual são rejeitados, em situação de perfeita igualdade, o provável, o duvidoso e o falso.
Isto nos leva naturalmente á conclusão de que o «sonho» de Descartes parece começar a cumprir-se. Pois, como podemos concluir, a doutrina expressa nas Regras não é senão o desenvolvimento da intuição que tivera cerca de oito ou nove anos antes, senão já desde os seus tempos de colégio: as diversas ciências «como ramos de uma só e mesma árvore» graças à aplicação generalizada do método que, no seu tempo, Descartes via ser apenas utilizado no domínio matemático, isto é, aos números e figuras.