O gerúndio expulso
A abolição do gerúndio e as tentativas de legislar sobre a língua.
por José Augusto Carvalho*
|
Decreto nº 28,314. De 28 de setembro de 2007. Demite o Gerúndio do Distrito Federal, e dá outras providências. O Governador do distrito federal, no uso das atribuições que lhe confere o artigo 100, incisos VII e XXVI, da Lei Orgnica do Distrito Federal, Decreta: Art. 1º - Fica demitido o Gerúndio de todos os órgãos do Governo do Distrito Federal. Art. 2º - Fica proibido a partir desta data o uso do Gerúndio para desculpa de INEf iciência. Art. 3º - Este decreto entra em vigor na data de sua publicação. Art. 4º - Revogam-se as disposições em contrário. Brasília, 28 de setembro de 2007. 119ª da República e 48ª de Brasília José Roberto Arruda |
|
|
René Étiemble René Ernest Joseph Eugène Étiemble, nascido em 1909 e falecido em 2002, foi um escritor francês especializado em Literatura Comparada. Ele preferia ser chamado apenas pelo último nome, Étiemble, no lugar de "René", por afirmar que seus ouvidos se ofendiam com o hiato entre o "e" e o "é".
|
| |
O professor de literatura René Étiemble, durante a década de 1950, tentou "higienizar" as letras francesas, numa luta que culminou com a publicação, em 1964, do livro "Parlezvous franglais?". O "moralista" da língua fez escola: posteriormente, na França, promulgou- se uma lei que proíbe expressões estrangeiras em placas e letreiros públicos, nas transmissões radiofônicas e televisivas, na publicidade e nas redações oficiais. Xenofobia inconsequente, porque o que caracteriza uma língua não é o léxico, mas a gramática.
Se um dicionário fizesse a língua, o romeno seria eslavo, e o inglês faria parte do grupo das neolatinas. Se a influência inglesa no francês produzisse um artigo novo, um novo plural ou uma conjugação verbal diferente, então haveria motivos para preocupações. A ausência de artigo partitivo na propaganda francesa de Coca-cola ("Buvez Coca-cola") assustou inutilmente os puristas: um caso isolado não mudou nem poderia mudar a sintaxe francesa, e o povo francês mantém intacto o emprego do partitivo, apesar da propaganda.
|
|
Artigo partitivo O artigo partitivo, elemento muito presente na língua francesa, atua como indicador de parte de um todo. Como explica Evanildo Bechara na sua Moderna Gramática Portuguesa: "A língua portuguesa de outros tempos empregava do, da, dos, das, junto a nomes concretos para indicar que os mesmos nomes eram apenas considerados nas suas partes ou numa quantidade ou valor indeterminado, indefinido: Não digas desta água não beberei."
|
| |
A língua e as leis
A tentativa de legislar sobre a língua é bem antiga e sempre fracassou. Em Portugal, em 1597, Filipe II estabeleceu as formas de tratamento "para sossego de meus vassalloz". Em 1739, D. João V fez o mesmo. Na Itália, em 1940, Mussolini tentou expulsar os estrangeirismos para "purificar a língua". No Brasil, em 1974, o general Euclides Quandt de Oliveira, ministro das Comunicações do general Geisel, tentou impor a norma culta, até mesmo nos diálogos das novelas, e banir o dialeto caipira das revistas em quadrinhos (Chico Bento, o personagem de Maurício de Sousa, foi ameaçado de morte, mas, estranhamente, o caipira Urtigão, das histórias Disney, foi poupado). Felizmente, o ministro desistiu e não levou avante o seu intento.
Há alguns anos, o deputado Aldo Rebelo tentou impedir por lei, com ameaça de multa aos reincidentes, que fossem usados nomes estrangeiros em dizeres públicos.
|
|
impor a norma culta O paralelismo entre norma culta e norma padrão é tema de diversos estudos na área de Linguística. Como expõe Carlos Alberto Faraco no artigo Norma-padrão Brasileira, presente no livro "Lingüística da Norma", organizado por Marcos Bagno (Edições Loyola): "Há na designação norma culta um emaranhado de pressupostos nem sempre claramente discerníveis. O qualificativo 'culta', por exemplo, tomado em sentido absoluto pode sugerir que esta norma se opõe a normas 'incultas', que seriam faladas por grupos desprovidos de cultura. (.) A cultura escrita, associada ao poder social, desencadeou também, ao longo da história, um processo fortemente unificador (que vai alcançar basicamente as atividades verbais escritas), que visou e visa uma relativa estabilização lingüística, buscando neutralizar a variação e controlar a mudança. Ao resultado desse processo, a esta norma estabilizada, costumados dar o nome de norma-padrão ou línguapadrão."
|
| |
No dia 3 de outubro de 2007, os jornais noticiaram o "fim do gerúndio", por conta de um decreto absurdo promulgado pelo governador do Distrito Federal, José Roberto Arruda, ato que lembra a anedota de Valéry segundo a qual o marido, ao flagrar a infidelidade da esposa no sofá da sala, "resolveu" o problema removendo o sofá. Em lugar de ensinar os funcionários a usar o gerúndio, resolve-se o problema banindo-o da língua, como se a língua tivesse um só dono, coisa que, aliás, o governo deve pensar, ao impor uma mudança ortográfica absurda e sem sentido, nascida pretensamente para unificar a ortografia dos países de língua portuguesa, mas que, infelizmente, não unifica nada, porque continua admitindo grafias duplas.
A revista Istoé nº 1980, ano 30, de 10 de outubro de 2007, na página 48, estampa o artigo "Demiti o gerúndio", assinado por José Roberto Arruda. Em seu artigo, o governador argumenta que demitir o gerúndio era uma necessidade, porque os funcionários públicos recorriam a ele "para justificar a própria ineficiência". Para ele, ditos como "estamos preparando" ou "estamos providenciando" (exemplos citados por ele como condenáveis, mas exemplos legítimos do uso do gerúndio que nada têm a ver com o gerundismo) caracterizariam "um crime contra a população" por representar uma "progressão indefinida".
Além do raciocínio indutivo que faz tabula rasa de todos os funcionários, considerados proteladores e ineficientes, José Roberto Arruda condena o gerúndio porque, para ele, o abuso do gerúndio é que seria responsável pelo emperramento da máquina administrativa. O gerúndio é que seria responsável pela burocracia, "enquanto doentes padecem nas filas dos hospitais". Vale dizer: eliminandose o gerúndio, os doentes terão atendimento, os funcionários exercerão suas funções com zelo, dedicação e eficiência. O gerundismo - como ele diz textualmente - é um crime contra a população.
Diz o governador que essa foi a maneira bem-humorada que encontrou para expressar sua impaciência com os atrasos no cumprimento das decisões. Segundo ele, o "decreto tem, quando menos, o mérito de abrir o debate sobre o tema. Além disso, mostra que o brasileiro mantém seu senso de humor." Eliminar o gerúndio do serviço público não foi um modo "bem-humorado" de evitar atrasos, nem sei se o senso de humor de um brasileiro reside na supressão do gerúndio ou se algum decreto que elimine uma forma nominal de verbos promova algum debate sadio. Na verdade, o governador partiu de um grande equívoco.