Escrever bem, segundo MC, não é só obrigação do escritor
Cá está mais um romance de Mia Couto (MC) que segue o trilho da escrita doce, leve e que nos faz rir, sorrir, sem gargalhadas. Um riso agradável; uma incursão aos meios sociais, crítica política, aos hábitos, aos lugares comuns que não nos ajudam a crescer. O ano passado, assisti uma palestra de Mia sobre hábitos de leitura e escrita. Este ano, lemos este livro para confrontar as ideias e fazer a triangulação necessária – O que o autor (i) diz contra o que (ii) escreve, considerando o que se (iii) lê. No fim, o que ficou?
É verdade que não se compra livros, porque estão caros, mas também sucede que existem pessoas com dinheiro que não compram nem promovem a compra de livros, apesar da leitura e escrita serem assuntos que merecem sempre uma atenção redobrada: A leitura é a droga leve e a escrita é uma pesada, diz. A falta de hábitos de leitura é comum a todo mundo, mas se a leitura não nos converter em escritor quase que não vale a pena ler. Estes Venenos e remédios, no fim, criam, em qualquer leitor, vontade de escrever e dirigir-se à nação.
“Sidónio encosta o guarda-chuva a um canto para depois seguir a dona da casa até à cozinha. O objecto, para ele corriqueiro, é estranho naquele contexto. Ali, ninguém se protege da chuva. Espera-se, simplesmente, que a chuva passe. Na vila, só existe o guarda-sol. Vale a pena abrigar-se do astro rei nos dias límpidos. Não vale a pena esperar que o nevoeiro passe nas manhãs que nascem sombrias.”
Escrever bem, segundo MC, não é só obrigação do escritor. Todos devemos escrever bem. O assunto da escrita não tem só a ver com escritores – É preciso ter atenção a essa armadilha – porque é comum a todos profissionais já que todos dependem dela.
A escrita também relaciona-se com a política. O discurso contra a pobreza, alerta o escritor, não pode ser pobre. Uma história pode ter resultados que mil discursos não têm, porque possui uma capacidade de encantamento exclusivo. E acrescenta, o discurso sobre os nossos heróis ficou vazio, porque foi muito politizado: Não tem histórias que o tornem atractivo.
“Dona Munda retira-se, pés nocturnos pisando no silêncio, o corpo querendo desgravitar. Recebe do médico a chamuscada camisa e arrasta-a pelo chão como um despojo sem guerra. Sidónio permanece parado, estatuado num canto do quarto. Bartolomeu Sozinho levanta a cortina, faz de conta que espreita pela janela, inspecciona no pulso um inexistente relógio.”
Onde reside o segredo para produzir e estar sempre presente na escrita, na literatura e nas ideias? Onde Mia busca esse veneno que o prende à criação? Simples, Resiste à televisão. Pode-se dizer mais, para além do que Mia diz, é que o país não cresce se não resistirmos aos copos, às amantes, às fofocas e ao desnecessário. Não se desenvolve se não se der tempo para tudo: Para os copos, as amigas, a fofoca, mas, sempre e sempre, começar pelo trabalho e, só nas sobras, a brincadeira (que também faz bem e gostamos). Se se inverte, bebe-se, e no tempo que resta trabalha-se, o edifício vai abaixo. O lazer só faz bem se for para divertir depois do trabalho (nunca o inverso).
O resultado do trabalho do escritor tem que ter a qualidade suficiente para concorrer com o audiovisual. Este livro recorre à comparação, uma figura de estilo que vai temperando as palavras e prendendo o leitor. Sem grandes correrias, mas com tranquilidade, concorre com qualquer audiovisual.
“O médico permanece impassível, sem saber se interrompe os desígnios do mecânico que se dobra sobre si mesmo, enquanto se vai queixando: os sapatos, adorno tão sofisticado e dispendioso, não deviam ser usados nos pés. Desperdício que raspassem pelas imundícies do chão.”
A junção de termos, palavras e frases, nesta obra, é sempre feita a propósito. O desejo de inventar, criar, contar, encontra-se dentro do espírito da frase. Cai bem. Só o título pode não agradar e até apetece perguntar a MC: Conhece algum veneno de Deus? Ou os homens é que deturpam Deus e criam os venenos com que envenenam outros homens? Quem cria o ruído? Claro que são os homens maus – verdadeiros lobos maus – que usam Deus indevidamente. O Diabo não tem nenhum remédio, Deus não tem nenhum veneno.
MC não recria a vida; recria as relações e os suportes que sustentam a vida. Por isso, defende essa tal tese de que o discurso contra a pobreza não pode ser pobre. Como ultrapassar as barreiras se não temos criatividade? A repetição é a morte das coisas. Dizer todos dias a mesma coisa e o outro não sentir que acordou e mudou algo na sua vida nunca resultará. Leva-o à saturação material, no início, e, depois, intelectual.
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