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O cineasta Sol de Carvalho levou 20 anos sem longa-metragens, criando “Jardim do Outro Homem”. Foi com ele que olhamos para um país que seduziu Hollywood, mas que depois se desapontou com altos valores para as filmagens.
As histórias dos filmes moçambicanos, mesmo que sejam de humor, são sempre dramáticas. Moçambicano é dramático ou o olhar do cineasta nacional é que é dramático?
- Tem a ver com as condições com que cresceu o cinema em Moçambique. Primeiro, a geração que faz cinema, grande parte, mais de 90%, nasceu e cresceu no Instituto Nacional do Cinema. Foi no tempo de Samora Machel e do socialismo, onde o cinema que se fazia era de engajamento político, do engajamento social, de sempre levantar problemas. Portanto, criou-se uma estética que associou a ideia de cinema moçambicano a cinema social. Depois, quando as coisas avançaram e entrou economia de Mercado, o cinema passou a ser sustentado pela comunidade doadora que está preocupada em apoiar Moçambique em área de problemas. E, é lógico, quando a gente faz filmes tem de colocar problemas o que passou a associar-se ou a ser igual a filme dramático ou filme sério.
O seu filme – “Jardim do Outro Homem” - surge quando há um forte debate sobre o HIV/SIDA. Havia um interesse em entrar nele ou era mais fácil fazer um filme sobre sida?
Esse é um problema complicado, porque você acaba sendo reduzido a um realizador de HIV/SIDA. Reduz-se toda a produção e a qualidade artística a esse facto e eu acho que não é assim. “Filadélfia” é um filme que foi reconhecido como uma grande obra artística com Denzel Washington e Tom Hanks. Esses filmes são antes de tudo filmes. O que acontece aqui é saber se o “Jardim do Outro Homem” é antes de tudo filme ou um panfleto sobre Sida. Qualquer filme é sobre qualquer coisa.
Então é difícil libertar-se desses estereótipos ?
A dificuldade está em conseguir explicar a quem nos dá dinheiro, que quando fazemos um filme sobre HIV/SIDA, a primeira coisa que temos de fazer é um filme. As pessoas dizem que já que têm lá mensagem sobre Sida está bom. Mas, não está! Muitas das vezes, as pessoas mal fazem o trabalho só para levarem dinheiro e irem embora. As tendência dos doadores são as de que tem que se fazer o filme politicamente correcto, mas, por vezes, o politicamente correcto não é um bom filme. O que acho que temos que responder é: se já conseguimos convencer os doadores que o dinheiro que estão a pôr em Moçambique, além de apoiar as campanhas sociais, agora podemos falar de desenganos, de amor e das tradições. Devíamos convencê-los que pôr dinheiro no orçamento do Estado, na balança de pagamentos, no Ministério das Finanças e no Ministério da Educação não chega, porque não se resolve o problema da cultura, não resolve o problema do país. E, infelizmente, o nosso Governo ainda não percebeu a importância da cultura. Vamos ver um exemplo, temos um grau de infecção que dita 15%, e somos 30 milhões. Isto significa que temos mais de dois milhões de pessoas em risco de morrer. Se comparare isto em relação a outras desgraças que aconteceram em Moçambique, em toda história, incluindo a guerra, verá que nunca se viveu uma situação que fizesse morrer tanta gente. Portanto, há-de se perceber que o problema essencial da sida é cultural. É um problema de comportamento, é o problema de como as pessoas reagem, quando se encontram – homens e mulheres. Para resolver este problema que está a matar muita gente, temos que solucionar a questão cultural. Põe-se muito dinheiro para a educação das pessoas, mas não é por aí, é preciso saber como chegar lá. Vai a uma comunidade dizer aquele homem que não pode ter três mulheres ou que as meninas não podem fazer sexo antes dos 16 anos. Aquilo que está a chegar nas mensagens nacionais é uma mentira, então as pessoas não ligam.
avaliando pelos prémios, como é que se justifica que o cinema moçambicano passe despercebido por cá e tenha um grande reconhecimento fora?
É preciso não exagerarmos. É claro que o nosso cinema tem alguma qualidade, mas precisamos ter cuidado. Essa coisa de andarmos por aí pensarmos que somos os melhores de África não é verdade. Há muito melhor cinema africano que o nosso. Os árabes fazem muito melhor cinema que nós, na África negra tem países que fazem muito melhor cinema que nós. Claro que ganhamos prémios, mas também porque há muitos festivais. Agora, comecei a seleccionar os festivais que vou, porque antes ia a todos. Também é verdade que por causa desse problema dos doadores e a maneira que nós tínhamos de contar história e fazer passar a mensagem, desenvolvemos técnicas que não existiam em outros países como “dockdrama”. Filmes de Licínio em particular, desenvolveram uma estética que é nova em relação a esses países e isso criou um movimento de reconhecimento em relação a esses filmes.
Mesmo não sendo um dos melhores cinemas como diz, Moçambique transformou-se num paraíso cinematográfico para Hollywood. O que contribuiu para essa preferência?
Há duas coisas. No cinema mundial, no geral, quando se está a contar história dos anos 60, precisa-se de um cenário. Quando você faz em África e procura uma estética, Maputo é uma cidade fantástica. O que aconteceu foi que para fazer história de “Ali”, era preciso ir para Congo, mas lá estava-se em guerra. Os sul-africanos disseram: vamos ver Moçambique. “Ali” que é um filme com muitos milhões de dólares, trouxe Jame Fox, Will Smith e um monte de gente famosa que se sentiu muito bem aqui. O Estádio da Machava foi utilizado por 30 mil dólares, as autorizações precisaram de 300 dólares. Quando o filme foi para os Óscares e Will Smith voltou cá, Moçambique estourou. Depois veio “Blood Diamond” veio o “Intérprete”, vários filmes dos EUA que trouxeram muitos milhões de dólares para Moçambique. Mas, o que aconteceu é que os sul-africanos, contactados pela Hollywood, disseram que Moçambique acabou. Moçambique acabou para Hollywood, porque se tornou mais caro. Para fazer filmagens no Aeroporto exigem-me 40 mil dólares, quando antes eram cinco. Atravesso os caminhos, na fronteira, a polícia de transito é toda avisada que vem aí uma equipa sul-africana. Os hotéis e carros sobem. Neste momento, filmar em Moçambique ficou caro. Matamos a galinha dos ovos de ouro. Eu, para filmar numa rua pagava 600 paus, mas agora tenho que pagar à polícia municipal, polícia de trânsito e à polícia civil, tenho que pagar seis milhões. Todos estão a comer gananciosamente do bolo, mas não dá para todos. Só tem uma maneira para resolver isto, que é criar uma Comissão de Filmes que possa se responsabilizar.
Há espaço para a nova geração de cineastas ou teremos que continuar a depender da geração do Instituto Nacional do Cinema?
Não se pode construir uma nova casa a partir do telhado, temos que começar das fundações. Faz-se um curso superior de cinema, mas não se faz uma escola profissional de cinema. Se este curso começar a funcionar em 2011, daqui a 2015 vamos ter 25 novos realizadores, moçambicanos e jovens doutores de cinema, mas que não vão fazer nada, porque não passaram pela experiência, não têm mercado. E depois seguem-se esses problemas de brancos e pretos... isso é outra conversa.
Fala de problemas de “pretos e brancos”, acha que há racismo no cinema?
Não acho. O que acontece é que, simplesmente, por razões históricas as pessoas que ficaram, os cineastas e os profissionais de cinema, a maior parte delas são mais claras. São as pessoas mais claras que se impuseram. É óbvio que muitas vezes vai-se a um festival, vêem Sol de Carvalho, perguntam quem é o realizador, e é um branco. Então as pessoas olham e perguntam onde estão os autênticos moçambicanos como se eu não fosse autêntico.
http://opais.sapo.mz/index.php/entrevistas/76-entrevistas/11178-uma-historia-de-desencanto.html