Por estes dias, mesmo para quem não conheça, não é difícil chegar à aldeia de Matalana, no distrito de Marracuene. As indicações são escassas – oito quilómetros depois de Marracuene deve entrar-se à esquerda por um estradão de terra [era essa a indicação que tínhamos] – mas o movimento desusado leva-nos com facilidade à terra do maior artista moçambicano de sempre: Malangatana Valente Ngwenya.
À entrada do estradão, um carro com aspecto oficial – era preto – e uma mão estendida a indicar-nos o caminho, antecipando-se à nossa pergunta, faz com que não tenhamos dúvidas que estamos no caminho certo para a casa do mestre. Um pouco mais adiante, cruzamo-nos com Mundau Obilino Magaia que, imediatamente, se apresenta: “ – Sou primo directo do Malangatana. Crescemos juntos. Eu sou escultor e músico”, refere.
Mundau, rapidamente inverte o caminho – ia a Marracuene comprar petróleo – para nos servir de cicerone. À pergunta se é mais velho do que o mestre, atira: “ – Sou de 1940. Agora faça a conta.” Fazemos. Tem 70 anos, menos quatro do que o mestre.
Pelo caminho ficamos a saber que trabalhavam juntos, na escultura e na música e que o instrumento preferido de Malangatana era o “tambor”. “Eu prefiro a guitarra. Ele era também um grande dançarino. Estava programado quando ele regressasse de Portugal nós fazermos um CD. Era um disco de Marrabenta onde ele cantava e tocava tambor.”
Mundau, nasceu, tal como o primo, em Matalana, uma terra que parece produzir muitos artistas. Hoje, vive em Maputo, no bairro do aeroporto, paredes-meias com Malangatana. “Tenho lá o meu ateliê.”
Tudo está parado, mas vamos criar
Viramos à esquerda, e entramos numa picada bem mais estreita, que, decididamente, não é feita para o trânsito destes dias. Os berros estridentes das crianças no cruzamento indicando o caminho para a casa do mestre, arranca sorrisos a Mundau que, jocosamente, diz “obrigado pela indicação pois estávamos perdidos.”
Passam dois camiões carregados de terra vermelha muito fina, daquela que só exista nesta África. “Vão descarregar e depois vem o tractor espalhar, para a estrada ficar mais lisa”, esclarece Mundau. “O presidente Guebuza não pode andar aqui aos saltos.” Quando o camião descarrega o pó vermelho cobre tudo em redor.
O primo diz-nos que Malangatana vinha amiúde a Matalana. Passava muitos fins-de-semana aqui.” Aqui é que Malangatana gostava de pintar, brincar com as crianças, visitar a casa de familiares e amigos de infância. “Era a casa dele”, resume.
Passamos pelo Centro Cultural de Matalana, uma das últimas grandes obras do mestre. São uma série de edifícios, alguns com aspecto inacabado. “Agora está tudo parado. Mas vamos criar”, promete Mundau. Que logo esclarece que o mestre vai ser enterrado no terreno destinado à Fundação que irá instalar-se por detrás da casa grande, recentemente concluída.
E continua: – “O corpo irá chegar na quarta-feira, pelas 19 horas, e irá estar aqui no centro onde vamos actuar com cânticos, danças, e… qué-qué-qué, qué-qué-qué, [o etc local] Hoje de manhã estivemos a limpar isto tudo.”
Estamos bem no coração ronga de Moçambique. Aqui o português é só usado para comunicar com os estrangeiros, com quem vem de fora e, da boca das wansatis – mulheres –, pouco mais sai do que um cumprimento de boa tarde. Os assobios, característicos desta língua, fazem-se ouvir aqui com bem mais intensidade do que em Maputo.
Já a sair da área do Centro Cultural, passamos por uma instalação da autoria do mestre que esteve exposta na Expo 98 de Lisboa. Trata-se de uma base de um carro, onde um crocodilo – Ngwenya, em ronga – transporta uma série mamanas e vários animais. “É uma confusão”, resume, para despachar, Mundau. “Estão todos no carro para seguir em cima do corpo dele.”
A picada apresenta-se cada vez com mais areia e não tardamos a cruzar com um carro atascado. “Aqui só passam 4x4.” Junto às casas do mestre o estacionamento não é fácil. “Isto não é nada. Na quinta-feira vai ser impossível”, previne Mundau. “Nessa altura não se vai conseguir aqui chegar.”
Tudo a postos
Lá está a casa ‘por enquanto’, assim lhe chamava o mestre, enquanto a outra, a grande ao lado, ainda não estava pronta. Foi aqui que Malangatana passou muito tempo, a pintar, a cantar, a conviver, a brincar. Dois quartos circulares com uma sala pelo meio e uma pequena casa de banho completam o espaço.
No interior, tudo está como o mestre deixou. “Esta escultura fui eu que fiz”, refere, orgulhosamente, Mundau, apontando para um busto de madeira curvilíneo. O espaço está decorado de uma forma muito simples, tal como era o seu proprietário. Quatro serigrafias da sua autoria adornam as paredes. Ao lado, uma foto com a seguinte legenda: “O Mundo na Cabeça” Carlos 96”, onde se vê duas mulheres do campo a carregarem duas pesadas latas. No cavalete, ficou um óleo com rostos tristes. Talvez Malangatana se estivesse a despedir da vida.
Duas estantes – uma com louça e outra com livros –, uma mesa de jantar, cadeiras em volta, uma geleira e uma arca congeladora completam o rol de objectos. O quarto, à esquerda de quem entra, era o do mestre. Uma cama alta de madeira ocupa a parte de leão, onde ainda se vê duas mesinhas com tampo de mármore e, no chão, a parafernália que existe sempre em casa de um pintor: tintas e pincéis. Num dos armários embutidos, ficou pendurada a bata, uniforme de trabalho destes artistas.
Cá fora, passamos pela casa grande, em tons laranja, projectada pelo amigo José Forjaz. É, sem dúvida, a maior construção num raio de muitos quilómetros. “É grande como ele”, atira um vizinho a rir-se.
Entre a casa grande e os terrenos destinados à Fundação, encontra-se uma comitiva que vem “tratar de organizar as coisas”, como diz Mundau. Estão exactamente no local onde o mestre vai ser enterrado. “Era a vontade dele”, esclarece Manuela Soeiro, directora do Teatro Avenida, do grupo de teatral Mutumbela Gogo e responsável pela vertente cultural do funeral. “A quinta-feira vai ser dedicada à cultura. Haverá danças, cantares, declamação de poesia, etc.” A comissão, criada para o efeito, anda numa azáfama para que tudo esteja em ordem quando, na quarta-feira (dia 12), o corpo chegar a Matalana. Andam para cima e para baixo, da casa para o Centro Cultural, num corrupio constante.
Os 83 anos de Champilino Ngwenya, já não permitem grandes correrias. Este primo de Malangatana é presidente da assembleia do Centro Cultural. É ele que reporta tudo o que se passa no Centro.
Nove anos mais velho do que Malangatana, recorda-se sobretudo dos anos de infância do mestre. “Gostava muito de desenhar. Na escola era o que fazia os desenhos mais claros” [leia-se melhores]. O berlinde e a fisga eram as brincadeiras preferidas. Há uns anos ainda me prometeu ir aos pássaros com a fisga. Mas já não conseguia andar muito bem por isso não chegámos a ir. Até agora vinha aqui passar os fins-de-semana. Era aqui que ele gostava de pintar porque na cidade tinha muitas visitas a desconcentrá-lo. Às vezes ficava aqui a pintar até de manhã. Tinha de pensar muito para fazer o trabalho dele.”
José Ntila está sentado à mesa de cimento que ele próprio construiu. “Fui eu que fiz tudo isto”, refere, apontando para a casa ‘por enquanto’, para a casa grande e para as construções do Centro Cultural. “Ele [Malangatana] explicava como queria as coisas e eu construía. Esta casa onde ele dormia foi construída em dois meses. Isto não é nada. Parece casa de brincar.”
Já a construção da casa grande arrastou-se por três longos anos. “Não havia dinheiro para terminá-la. Teve que ser aos poucos.” Uma casa para a Fundação era outro dos planos próximos do mestre, como assegura Ntila. Para isso contava com o apoio de Portugal, dos países nórdicos e com instituições como a UNICEF e os CFM.
Este também primo do mestre, de 72 anos, não nasceu em Matalana mas conhece a terra como poucos. “Nasci do outro lado do rio [Incomati] junto à Macaneta. É mais fresco”, risos. “Ele [Malangatana] era homem de força. Não estava a ver nada que o pudesse matar de um dia para o outro. Quem está sempre com a arte na cabeça nunca fica quieto. Está sempre a contar histórias. Se ele estivesse aqui só durante o tempo que estamos aqui a falar já teria feito vários desenhos. A arte era aa sua televisão.”
Cristóvão Araújo
SAPO MZ