São os “netos que Salazar não teve” e podem ajudar na construção de uma memória colectiva da Guerra do Ultramar. Os filhos de combatentes foram alvo de uma investigação do Centro de Estudos Sociológicos de Coimbra. Há 50 anos, começava a Guerra Colonial.
O projecto “Filhos da Guerra Colonial: pós-memória e representações” tem como principal objectivo descobrir como é que o acontecimento é retratado pela segunda geração, ou seja, pelos filhos de antigos combatentes e, ao mesmo tempo, se estes indivíduos foram afectados pelo trauma da guerra.
Foram conduzidas entrevistas a 220 portugueses que nasceram entre 1960 e 1985. Para conseguirem uma análise comparativa, os investigadores estudaram três grupos distintos: filhos de ex-combatentes que sofreram trauma psicológico, filhos de ex-combatentes que se integraram normalmente depois da guerra e filhos de homens que não prestaram serviço militar.
Uma guerra silenciada
“A guerra colonial foi uma guerra indizível, durante muitos anos era uma não guerra e manteve-se viva naqueles homens que viveram aquelas situações”, refere Luísa Sales, responsável pelo Serviço de Psiquiatria do Hospital Militar de Coimbra e investigadora do CES.
O estudo tentou saber se os filhos da guerra poderiam herdar dos pais combatentes os traumas psicológicos. A conclusão geral é que “não existe doença mas existe um maior sofrimento psicológico, uma maior vulnerabilidade para em situações de tensão virem a sofrer uma patologia desta área”, explica a psiquiatra.
Memórias fragmentadas
A segunda geração do conflito de África tem um tipo de memória da guerra “muito particular” porque não tem “a titularidade da experiência, já que não foi à guerra nem é capaz de produzir um testemunho”, explica Mafalda Calafate Ribeiro, coordenadora do projecto.
Ainda assim, estes filhos da guerra conseguiram construir uma narrativa do acontecimento, feita muito em torno de “fragmentos de outras narrativas, de fotografias e objectos em casa”, nota a investigadora do Centro de Estudos Sociológicos de Coimbra (CES).
O principal contributo desta segunda geração, “os netos que Salazar não teve”, nas palavras da responsável, é contribuir para uma memória colectiva da guerra colonial na sociedade portuguesa. Os investigadores acreditam que actualmente o acontecimento ainda é lembrado muito pelo grupo que o viveu e pouco pela sociedade em geral.
Quando estes indivíduos que viveram a guerra de forma indirecta expressam-se publicamente através das artes, música ou cinema estão a contribuir para tornar pública uma memória privada. O que pode ser visto em algumas obras da pintora Ana Vidigal ou no mais recente documentário da realizadora Marta Pessoa, "Quem vai à Guerra". Marta Pessoa foi entrevistada no estudo "Filhos da Guerra".
Os resultados finais do projecto vão ser divulgados nos dias 28 e 29 num colóquio organizado pelos CES em Lisboa. Será também publicado um livro com cinquenta testemunhos dos filhos de ex-combatentes que participaram na investigação. Em paralelo, está a ser desenvolvido outro projecto sobre a poesia da Guerra Colonial.
@Alice Barcellos
03 de Fevereiro de 2011