Belém, 14/02/2006
As últimas de que me recordo no momento, passadas em Moçambique.
O CINEMA.
D'entre os irmãos, o teu pai era o único com corpo para entrar no cinema onde os filmes, salvo raros casos, eram para maiores de 12 ou 18. Nós não tinhamos vez! Não tinhamos? Tinhamos sim! Se fosse o caso fazíamos uma coleta e pagávamos o cinema dele.
À noite, depois do jantar, à luz do petromax, ele contava o filme todo.
Só que além de contar o filme ele dramatizava-o com tiros, ricochetes,
balas zunindo, o barulho das balas acertando os bandidos, bandidos caindo, socos etc.
Os teus avós faziam parta da plateia também e era algo que esperávamos com ansiedade. Te digo que assistir ao filme não era melhor do que assisti-lo.
O HOMEM MAU
Depois do quinto ano do liceu, o teu pai foi para a cidade da Beira estudar.
O homem mau era um administrativo, que embora não tivesse os disformes de um anão, não era mais alto do que um. Não me lembro do nome dele, mas para teres uma idéia da fera, os sul africanos, enfrentando uma greve com trabalhadores de Moçambique, intrincheirados nas minas, pediram ao governo de Moçambique que mandassem uma companhia do exército ou o "Homem Mau".
Mandaram o homem mau. Ele acompanhado por um polícia indigena (cipaio), se anunciou e mandou-os sair. O pavor deles era tão grande que, embora tivessem enfrentado sem medo a polícia sul africana, que não era flor que se cheirasse, sairam um a um passando pelo cipaio que lhes aplicava meia dúzia de palmatuadas a título de corretivo. Dessa vez não matou ninguém. Entre outras coisas, acreditavam que ele era feiticeiro...
Bem, o teu avô e eu fomos levar o teu pai para um semi internato dos maristas na Beira.
A meio do caminho havia um (único) restaurante de beira de estrada onde o teu avô sempre parava. Parámos. Corremos para o banheiro onde um garoto, de costas, se preparava para usar o urinol.
O teu pai não teve dúvidas. Agarrou-o pelos ombros e levantando-o
foi dizendo:
Aguenta aí que eu estou mais apertado... Quando viu o que tinha feito
ele pediu desculpas e a vontade de esvaziar a bexiga passou na hora.
O homem mau não disse nada...
NO RESTAURANTE
O teu avô, embora sempre tivesse sido um camarada para nós, não deixava de passar uma ideia de austeridade, de passado impoluto e ... responsável, o que nós não eramos de forma alguma.
Nessa mesma viagem à Beira, fomos almoçar no OCENIA, restaurante
à beira mar e onde muitas vezes voltei quando adulto.
Já no fim do almoço, apareceu um antigo colega do teu avô de Abrantes.
Não se viam há muito tempo e depois dos abraços o colega resolveu recordar as tropelias do teu avô. O teu pai olhava para mim com cara
meio de espanto e um olhar de... Olha quem falava de nós!!! O teu avô,
calado, percebia o que se passava. Ás tantas ele virou-se para nós e disse:
Isso tudo meus filhos, era porque eu tinha um pai rico que pagava pelos meus erros. Vocês não têm! Tratem de ter juizo!
A partir daí as broncas não foram mais tão feias.
Só voltei a vê-lo de novo em Moçambique, pouco antes d'ele se casar com a tua mãe.