Quais são as operações do espírito que nos permitem chegar à verdade?
«(..) Vamos agora passar em vista todos os actos do entendimento, pelos quais podemos atingir o conhecimento das coisas sem nenhum modo de erro: não se admitem mais do que dois, a intuição e a dedução.
Por intuição entendo não o testemunho instável dos sentidos, nem o juízo enganador da imaginação que realiza composições sem valor, mas uma representação que é o acto da inteligência pura e atenta, representação tão fácil e distinta que não subsiste nenhuma dúvida acerca do que nela compreendemos; ou então, o que vem a dar no mesmo, uma representação inacessível à dúvida, representação que é o acto da inteligência pura e atenta, que nasce só da luz da razão, e que, porque é mais simples, é mais certa do que a dedução; todavia também esta, apontámo-lo anteriormente, não pode ser mal feita por um espírito humano. Deste modo, cada um pode ver por intuição que existe, que pensa, que o tringulo é delimitado apenas por três linhas, a esfera é apenas uma superfície, e outras coisas semelhantes, que são muito mais numerosas do que se apercebe a maior parte das pessoas, porque desprezam aplicar o seu espírito a coisas tão fáceis. (…)
Ora esta evidência e esta certeza da intuição não são apenas requeridas para as simples enunciações, mas também para toda a espécie de processo discursivo. Seja, por exemplo, o seguinte resultado: 2 e 2 é igual a 3 mais 1; é preciso ver intuitivamente não só que 2 e 2 são 4, e que 3 e 1 são igualmente 4, mas, além disso, que a primeira se inclui, necessariamente, destas duas últimas.
Poderão desde então interrogar-se porque à intuição juntamos um outro modo de conhecimento, o que se realiza por dedução; por ela entendemos o que se conclui necessariamente de certas outras coisas conhecidas com certeza. Foi necessário proceder assim, porque a maior parte das coisas são o objecto dum conhecimento certo, embora por si próprias não sejam evidentes; basta que sejam deduzidas de princípios verdadeiros, e já conhecidos, por um movimento contínuo e interruptor do pensamento que tem de cada termo uma intuição clara; é deste modo que sabemos que o último elo duma cadeia está ligado ao primeiro, mesmo que não vejamos num só e mesmo olhar o conjunto dos elos intermédios de que depende a ligação; basta que os tenhamos examinado um após outro e que nos lembremos que do primeiro ao último cada um deles está ligado aos seus vizinhos imediatos. Distinguimos, portanto, aqui, a intuição intelectual da dedução certa, na medida em que concebemos numa uma espécie de movimento ou sucessão e na outra, não; e porque, além disso, para a dedução não é necessária, ao contrário do que respeita à intuição, uma evidência intelectual, mas é antes à memória que, de certo modo, vai buscar a sua certeza. Daqui resulta que podemos dizer destas proposições que se concluem imediatamente a partir dos primeiros princípios, que as conhecemos tanto por intuição como por dedução, conforme o ponto de vista em que nos colocamos; mas que os primeiros princípios são conhecidos somente por intuição, enquanto as conclusões distantes só podem ser por dedução.
Estas são as duas vias certas para chegar à ciência; do lado do espírito não devemos admitir mais, e todas as outras devem ser rejeitadas como suspeitas e expostas ao erro (…)»
Regra III
Este excerto da III Regra diz-nos que existem apenas duas vias para a construção da ciência, às quais correspondem a duas operações naturais da razão: são elas a intuição e a dedução.
A intuição é «o acto da inteligência pura e atenta», «representação inacessível à dúvida…que nasce só da luz da razão», isto é, a intuição cartesiana é puramente intelectual e não sensível, é um olhar do espírito: e, como tal, os conceitos que apreendemos por intuição caracterizam-se pela sua simplicidade e evidência, pela sua absoluta certeza. Descartes dá exemplos: «cada um pode ver por intuição que existe, que pensa…»
A dedução é a operação pela qual «se concluir necessariamente de certas outras coisas conhecidas com certeza», «é um movimento contínuo e intercepto do pensamento que tem de cada termo uma intuição clara»; por outras palavras, a dedução é a passagem duma intuição a outra intuição pela intuição da sua relação. Descartes, explica também: a afirmação de que 2 e 2 é igual a 3 mais 1 implica que vejamos que 2 e 2 são 4, que também vejamos que 3 mais 1 são 4, o que nos obriga a ver a igualdade entre elas.
A dedução é., afinal, uma cadeia de intuições, uma intuição continua. Tal como expressivamente sublinha este autor:
«Assim a dedução cartesiana não é senão a ordem das nossas intuições parciais da verdade. A intuição é, em definitivo, a única maneira de conhecer; a dedução é um subterfúgio pela qual, não podendo conhecer tudo simultaneamente, nós procuramos atingir o equivalente desse conhecimento total numa sucessão indefinida de conhecimentos incompletos.
Mas, para que a dedução preencha esse papel, não basta que ela nos forneça uma série de intuições distintas umas das outras; porque a verdade total não é a simples soma dos seus elementos, as verdades parciais, ela é a sua unidade; é, pois, necessário que a dedução seja uma intuição contínua; é, pois, necessário que a dedução seja uma intuição contínua; é necessário que duma intuição nós passemos a uma nova intuição pela intuição da sua relação; é necessário que o espírito não deixe um momento só de compreender. E assim o pensamento poderá realizar em si mesmo, não dum modo imediato, por um acto absoluto, mas progressivamente e pela continuidade do desenvolvimento da sua acção imperfeita, a certeza ou conhecimento infalível da verdade».
P. Landormy – Descartes, Mellotée Ed. Paris
Segundo este autor, a intuição e a dedução distinguem-se por duas razões importantes: esta implica «uma espécie de movimento ou sucessão», existe um certo tempo para que se estabeleça a ligação entre os elos da cadeia, daí a necessidade da memória, ao passo que a intuição é absolutamente instantnea; como tal, a certeza da intuição é imediata, enquanto a da dedução é derivada, dependente de outras; e talvez seja esse o sentido em que Descartes diz que «a intuição é mais certa que a dedução».
Mas o texto diz ainda outra coisa fundamental: «a maior parte das coisas são objectos dum conhecimento certo, embora por si próprias não sejam evidentes; basta que sejam deduzidas de princípios verdadeiros e já conhecidos».
Quer isto dizer que, tal como referimos atrás, Descartes sabe que a maioria das nossas verdades são adquiridas a partir de outras, o que é sinal da limitação do nosso espírito, mas também do carácter progressivo do nossso conhecimento.
Assim sendo, podemos afirmar que, para atingir o se mais alto grau de perfeição, isto é, para obter o maior número de conhecimentos certos, a razão necessita de conduzir-se de determinada maneira, percorrendo um caminho que lhe permita dispor as ideias segundo «a ordem das razões», ou seja, de tal modo que cada uma seja precedida de toadas aquelas de que depende, e que ela preceda todas as outras que dependem dela.
«E é por isso – que intuição, dedução e ordem são noções inseparáveis. Sem intuição, a ordem nada seria, e permaneceria sem matéria. Sem a ordem, as intuições apresentar-se-iam ao acaso, como experiências fragmentárias, e o seu conjunto não constituiria um saber. Por isso o método se propõe simultaneamente descobrir o simples, objecto da intuição, e dispô-lo segunda a ordem, pela qual poderemos elevar-nos, como que gradualmente, e duma maneira racional, até ao conhecimento do complexo. Substituir o complexo que se apresenta, e se apresenta sem razão, numa espécie de experiência confusa e espontnea, por um complexo ordenado e racionalmente reconstruído, é que é efectivamente construir a ciência».
F. Alquié – Ob.cit
Em suma, segundo Descartes a razão é essencialmente metódica no seu funcionamento, ou, como ele diz no início do Discurso, «o bom senso é a coisa do mundo mais bem distribuída …o bom senso ou a razão é naturalmente idêntica em todos os homens… não basta ter o espírito bom, o principal é aplicá-lo».